Prólogo

08|06|2015

Apenas mais um daqueles dias em que as ruas se revelam lugares absolutamente notáveis, quando me flagro caminhando após mais um dia de trabalho absolutamente entediante. O tédio não se mostra tão terrível quanto muita gente tende a rotular. O tédio é uma bela forma de incluir o álcool na rotina da existência. Bebe-se feliz em meio a muitos supostos amigos e isso é mais comum e previsível quando se busca manter toda aquela situação de dependência por sorrisos e endorfinas. Admiravelmente confortante, mas absolutamente lisérgico porque a busca pela manutenção desse tipo de coisa tem um efeito de fumaça de crack sendo absorvida pelos pulmões e se produzem visões absurdas acerca do absurdo das funções cerebrais. O tédio se revela a partir da libertação dessa toxina rotineira. E então as ruas finalmente se tornam cenários notáveis de observação acerca do senso de que muitos e muitos humanos vivem em liberdades condicionais. O sol já se colocou atrás dos prédios verticais no horizonte poluído da metrópole e então todas as luzes se acendem exatamente quando se apagam todas as possibilidades e oportunidades que somente o dia pode proporcionar. A noite não é lugar para oportunidades. A noite é para se buscar sobrevivência onde os fracos não tem vez. O caminhar frenético de pessoas buscando retornar para suas casas para fugir do lúgubre ambiente artificialmente iluminado é intenso na hora do rush, e pernas vestidas com calças sociais, uniformes, saias xadrez, bermudas descoladas, jeans em milhões de variações entram nos metrôs e trens e ônibus e táxis e em suas pequenas máquinas particulares motorizadas para sobreviver ao inóspito caos noturno e se abrigarem em casa.

Caminhar solitariamente tem sido minha experiência. Experimentar o doce sabor de não haver uma companhia para compartilhar ideias e assuntos deve ser digno de mantras budistas pela confortante ideia de auto-aceitação demasiadamente humana. Não há críticas, não há atritos tampouco sorrisos entreolhares ou compaixões subjetivas. O tédio inclui não apenas o álcool na legitimação da solidão, mas também serve como lentes bastante potentes para observar seja lá o que for que se passa ao seu redor: pessoas mergulhadas em smartphones em busca de algum tipo de humanidade que o mundo real talvez não consiga proporcionar, casais andando de mãos dadas e corações distantes, universitários matando suas aulas em busca da ressurreição boêmia noite após noite e todo o volume alto, complexo e infinito de sons intensos que talvez se esgotem quando evoluirmos para a comunicação plenamente mental/telepática (ou pelo WhatsApp, o que dá na mesma).

E isso me leva ao tédio. E o tédio me leva a assumir um outro tipo de postura diante das ruas. Então observo. Silencioso por fora, eloquente por dentro. Um sistema defensivo desenvolvido involuntariamente, acho que pelo instinto mesmo, tal qual os russos fizeram durante o inverno para apartar o avanço alemão durante a segunda grande guerra: silenciosos por fora, vorazes por dentro.