O QUARTO DE DESPEJO ETERNO
Relatório da ONU revela quadro de pobreza no mundo. Segundo dados, 1,3 bilhão de pessoas vivem em situação de pobreza. (Fonte: https://jornal.usp.br/radio-usp/relatorio-da-onu-revela-quadro-de-pobreza-no-mundo/, visitado em 18/03/2024)
A Leitura do Livro “Quarto de Despejo”, apesar de retratar uma realidade vivida pela autora nos anos 50, mostra-nos uma situação ainda presente e inquietante no cenário global.
Quando entre os anos de 2000 e 2010 trabalhei em projetos sociais em favelas do estado de São Paulo, percebi um universo desconhecido por muitos, além de estigmatizado, muitas vezes injustamente.
As regiões pobres são alvo de segregação social e de violência do Estado. Mas, ao contrário do que a população de classe média e alta pensam, vem delas a maior parte dos serviços e mão de obra que sustentam seus luxos.
Além do trabalho de reciclagem, que traz impactos positivos e tão necessários ao meio ambiente, a população mais empobrecida está nas funções servis e de contato diário. Estão no atendimento em panificadoras, supermercados, locais em que existe um contato direto entre classes sociais. Alguns, dentro das residências da classe média e classe alta, mantendo jardins e realizando limpeza, cuidando de crianças como babás.
Se essa população decidisse não sair para trabalhar, a sociedade sofreria um grande impacto.
A sociedade se sustenta com o trabalho mal remunerado de muitos. E como são muitos, os políticos também dependem deles para se elegerem.
"Político quando candidato/Promete que dá aumento/E o povo vê que de fato/Aumenta o seu sofrimento"(pág. 135)
E nesse contexto, a cor da pele é fator determinante. Viemos de uma sociedade escravista que ainda mantém sua cultura excludente para essa população, vítima maior de toda violência e segregação.
"A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é minha pele. Preto é o lugar onde eu moro."(pág. 167)
Aos mais pobres, as pequenas conquistas precisam ser alcançadas com protestos, pneus queimados, interrompimento de vias públicas. Somente no grito conseguem alguma atenção. Por isso, o pobre pode parecer rude.
"Quando eu retornava para a favela encontrei com uma senhora que se queixava porque foi despejada pela Prefeitura. Como é horrível ouvir um pobre lamentando-se. A voz do pobre não tem poesia."(pág. 140)
Aos pobres, não existem moradias dignas: a eles cabem a ocupação irregular, o uso irregular de energia e água, essa última um direito humano óbvio.
Hoje, trabalhando no atendimento social de uma empresa de saneamento, continuo a ter contato com a população mais pobre.
Em um momento, na semana passada, ao perguntar a um senhor, que teve o fornecimento de água suprimido por falta de pagamentos, qual a previsão que teria para o pagamento das contas, recebi a resposta: “a previsão do pobre é a fome”.
O ciclo de pobreza se mantém, pela falta de oportunidades aos mais vulneráveis, pela falta de qualidade da educação básica.
Na cidade onde moro, Joinville/SC, existe farta oferta de empregos e escuta-se muito a frase: “emprego existe, quem não trabalha é porque é vagabundo”. Outra frase comum, dirigida aos moradores com hábito de rua: “dê uma enxada e faça-os trabalhar”. Como sobreviver com enxada numa cidade urbana?
Mas, àqueles que conseguem se empregar, os salários não garantem o custeio mínimo, obrigando as famílias mais pobres a ocuparem terrenos irregulares.
Existem ainda, muitos sem qualquer qualificação, idade avançada, doentes. Pessoas que não são “produtivas” e que reforçam a utilização humana – o ser humano sendo objeto para consumo, sendo descartado pela aparência, formato, cor e desuso.
A humanidade alcança rápidas conquistas tecnológicas, mas, permanecem ao serviço dos que tem mais renda. Ainda estamos muito atrasados no desenvolvimento humano e na construção de uma sociedade justa e que traga dignidade a todos, sem exceção.
Trechos retirados do livro "Quarto de Despejo, Diário de uma favelada" de Carolina Maria de Jesus. Editora Ática. 2021, Décima edição.