O tornar-se humano de uma velha gata

Existe algo no sorriso espontâneo, talvez amor, apreço, respeito ou simplesmente o querer bem do outro. Se olhos brilham, acho que eu mesma não poderia escondê-los. Um livro aberto, ressoa assim imaginar o meu rosto olhar além de si mesmo.

Na palma gelada e hesitante, nos movimentos copiados e na ilusão do estar. A felicidade genuína é um rastro de infidelidade contra sua alma, pois ela diz sem rodeios o quanto quer estar com alguém. Mas eu saberia quando algo em minhas atitudes está errado. "Isto não se encaixa tão bem", assim como deveria ser e por isso a atitude sincera se torna desconfortável, uma exposição da carne viva, crua e nua.

Palavras como estas lembram-me de pensamentos desbotados que uma vez compartilhei com a voz lúgubre da floresta, Parupodra. Como redizer? Minha pele vem desmanchando como estivesse em decomposição. É um processo atordoante quando sinto não caber mais dentro de mim, é apertado e sufocante ouvir meus próprios pensamentos e sentir emoções que consigo, finalmente, vez ou outra dar nome. Mas então, quando desfruto da liberdade de uma chuva, me perco no profundo balançar de uma folha ou sou engolida pelo céu nebuloso me desfaço em mil partes e sou levada. Isto parece transcendental, nada físico de fato, aproxima-se mais de um contato espiritual onde almas são trocadas entre a natureza e eu. Me sinto assim, um tecido maleável. Até consigo amar-me mais em dias como esses que alguns talvez apenas classificariam como uma sensibilidade momentânea, contudo que ouso chamar de morte-em-vida e, por fim, renascer.

Senti sozinha frio, sede, fome e medo no encalço de meu lar, e o que dizer da satisfação em tê-los? Não sou maluca, contudo. Percebê-los correndo dentro de mim trouxe consigo uma chama ardente. Isto era viver, sentir, ser. Estava viva, era o que entonavam de maneira gentil. Viver tornou-se um símbolo de beleza e encanto, como uma honra pela qual deveria constantemente agradecer. A vida transbordou nessas pequenas coisas e com elas meu coração explodiu em alegria. Desejei correr, dançar e cantar, mas ainda sozinha estar. Sim, havia esta subjetiva sensação de que somente em mim encontraria o brilho para continuar. Seguia-se a metamorfose, a mudança e assustei-me ao constar que minha consciência– agora, porém, mais sensitiva– ainda estava lá. Ah, que fascinante e assustadora é a compreensão de si no vasto vão ao qual chamamos imensidão.

"Um gato arisco" soa como uma conjectura desfiada, incômoda e amarga, pois assim me veem e dessa forma sinto-me algumas vezes. Li uma vez: 'misantropia'. Eu mesma posso sofrer desse mal, escondendo-me desses sentimentos desconfortáveis que, bem sei, podem eclodir, afogando-me no mar da mortalidade. Isto é medo, mais do que isto: é um íntimo terror descontrolado de estar em evidência. Agora não sei se sou uma gata ou uma mulher, se já fui uma ou outra e, se fui, não sei qual primeiro. Apenas sei que venho apagando, esquecendo, mergulhando mais fundo em uma caverna cômoda e distante.

Dizem que estas terras são cercadas por um cemitério e as almas levantam-se a conversar. Isto parece lógico, pois bem escutei murmúrios e tambores distantes, um rastro de humanidade familiar que me faz desejar ali estar, mas de lá me ausentar. Estou tornando-me gente ou deixando de o ser? Esta resposta ficará para outro dia, longe do vinho sangrento que percorre minhas veias, longe da coberta que aquece, mas machuca, desta pele mundana e podre. Que a sábia Morte tenha as respostas que aqui jamais poderei encontrar, mas que as traga devagar, no tempo de ser o que nomearei por hoje de solene chegar.

Lyadri Pondraci
Enviado por Lyadri Pondraci em 27/02/2024
Código do texto: T8008618
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