Quando a primeira chuva cai
Quando a primeira chuva cai lava espíritos cansados, o morto renasce e o vivo canta pois nela sempre há esperança. Existe magia na forma como as gotas tocam nossas casas, nossos chãos, nossas almas solitárias que de tanto usarmos nem mesmo nossas mais são. O mundo todo congela por alguns minutos para escutar as crianças saltitarem no chão, o vapor tomar as janelas e o céu ranger, uma prova auditiva de nossa pequenez. Não há quem pare esta beleza, tolo que o queira, pois ela nos torna eternos momentaneamente. Ah, quero ficar na cama, sonhando...Mas a manhã já vem começando.
Quando a tarde surge, vívida em mocidade, e os sussurros das árvores abrilhantam a beiradinha das margens onde o rio se eleva, não somos mais velhos. A tarde retorna à infância com seu verde mais iluminado e o Sol, que observa tudo de cima, sente-se tímido ao ver tanta exuberância ressurgir. Discretamente ele toca cada rosto, entra pelas frestas e colore o mundo de um rosa gentil. Beija-me a face como namorados que somos, eternos amantes, confidentes silenciosos. Nos entendemos assim, sem palavras, mas com toques. E no fechar dos olhos, ao sentir seu calor energizante no final de tarde, percebo que não estamos tão distantes.
O Rio Poty cheira a peixe e o ônibus está lotado, mas o vento que vem de fora ainda assim é agradável. Seca o suor, leva as preocupações e traz boas novas. Sobre a água tapetes verdes flutuam e neles garças brancas assistem em bando o pôr do Sol amigo. Devem cochichar segredos que descem...Descem ao fundo do rio, onde dormirão com as pedras ou serão engolidos por peixes.
Ah, o dia vai passando, verdejando, nos lembrando que por alguns segundos somos os mais honrados entre os humanos. Até a perspectiva de nossos desejosos lares desaparece, pois somos completamente tomados pelo momento, precioso momento, após a chuva que finalmente caiu. Quem dera me levasse o mais distante possível da realidade, quem dera essas palavras imaginadas fossem de fato confidências entre nós. Seríamos amigos, o Vento, a água e eu e partiríamos entre todos os mundos possíveis juntos. Acho que estou apenas cansada da realidade. As árvores estão certas afinal, eu sou uma alma solitária. Não poderei enraizar-me ao chão e entoar longos diálogos com a floresta em dias chuvosos como esse, ao contrário, estou sob a coberta da casa, curiando sozinha um encontro de eternos amigos que não me diz respeito.