Os segredos contidos em uma pedra e outros pensamentos
Estando eu excruciantemente presa sob as paredes de um lar que desconheço, nas raras vezes que saio — quase sempre banhada pela tranquilidade da Lua — percebo a noite como um afago de avô. O bafo gelado se choca com meu rosto e enche-me de fôlego. A noite se tornou uma lembrança, assim como as imagens através da janela do carro o são; como o cheiro de perfume agradável da mulher sem rosto e as cascas da tintura das carteiras da antiga escola também são. Mas a noite não é meu passado, a noite é meu presente. Como pode uma lembrança abandonar o hesterno e procriar-se no agora? Ela tornou-se mais viva que eu mesma, mas não fora eu quem lhe dera vida. A noite é como as pedras, escutando, recolhendo, guardando segredos. Ela rouba a essência que nos escapole em momentos de latência, quando somos submersos em emoções inomináveis, e a remodela para que pareça sua. Amo-a por sua dádiva, por recolher todas as almas de uma só vez; a reunião das vidas que se foram, são e serão, ademais também daquelas que já não podem ser.
Deveria lhe falar das pedras agora, pois elas sempre transparecem um incômodo que não posso descrever. Não falo de pedras polidas, as ditas cultas anfitriãs dos soberbos, mas as pedras "feias" — opinião de parvos, não minha — e tortas e comuns e incômodas. Elas me olham e eu retribuo com inquietação; murmuram estas palavras que te lembrarei: "dê-me teus segredos". E os damos, mesmo que esta não seja nossa intenção primordial. No meu caso, apenas confio na sua capacidade de não falar por pura exaustão da humanidade que somente elas podem assumir. As pedras desprezam aos homens — aos homens e a nada mais — com ardor que nenhum humano poderia superar. Mas agradeço seu trabalho oferecido às almas tolas, nossas almas, pois no dia da dor, quando sento-me ao chão pronta para desistir, são elas que estão ali a perguntar "por que choras?" e eu lhes digo coisas como "não sei quem sou", "sinto saudades de casa" ou "perdi uma pessoa que amava" para que elas possam suspirar, sabedoras de que estas dores não são apenas minhas dores, são as mesmas dores que outro humano já bebeu e, assim como eu, as confessou em sussurros agonizantes.
Há também 'o' Sol. Alguns o chamam de 'o rei' e esta manhã estive pensando neste título. Sol e Lua; 'o' poderoso, imponente, aquele ao qual não podemos olhar 'deveria ser homem' e 'a' Lua, gentil, delicada e dependente da luz de outro corpo celeste 'uma mulher'. Estas coisas me incomodam com frequência agora e, por não ser uma tábua, opto sempre pelo que minha imaginação oferece. A Sol, a Lua, as Estrelas... O Sol, o Lua, os Estrelas...No final é apenas um pronome os distanciando. Talvez deva matá-los, assim serão apenas Sol, Lua e Estrelas. Suspirei profundamente. Até tentei escapar do incômodo em lidar com olhos que desconheço, sentando ao fundo do ônibus em uma das poucas vezes que a vida obriga-me a sair; estava quase feliz. O desconforto das pessoas, porém, sempre tira-me o sorriso. Não sou ingrata — acredite, por dentro sorria. Olhei de um lado para o outro, do chão à janela — escapei do reflexo de outra pessoa — voltei aos sapatos e pés. Pérolas, uma sandália com crostas de barro, chinelas, a dobra de uma calça...observar estes detalhes é tão divertido quanto decorar placas de carros; enquanto me perco neles — os segredos que poucos percebem — vou sonhando. Como a luz que vai e vem, o rio cristalino onde correm Füizes, o cheiro do campo que logo parte e a expectativa de saber que brevemente estarei em meu verdadeiro lar. Esta ideia tem me animado absurdamente, tanto que prometi-me não resmungar estes dias que vão passando, mas vivê-los como a preciosidade que são: lembranças presentes que esta noite já são lembranças passadas.
Outras ideias me incomodam em segredo. Sinto a sensação de eterna impermanência, pois olho ao Tempo e dele sempre pareço me abster. É como se em matéria de vida, nossas essências— pois tudo há de ter essência, mesmo o intocável soberano — não se combinassem. Somos formas distintas, ambas maleáveis e simultaneamente imutáveis. Somos o que somos; somos a plena exerção do Ser. Mas nele não encontro morada e ele não poderia encontrar em mim. Então decaio na Escada Simplória que rege a vida, esta que tem início, meio e fim, e vendo-me no início, o passado inquisidor, que chamo de Herne*, afirmo esta inadequação de matéria e inematéria. O passado vaga pelos montes, como alma levada e cruel, derruba pedras e tira-me o sossego, mesmo agora que detenho uma alma velha. E vou ao presente, onde nele também me vejo ausente. O meio do caminho parece-me vagorosamente cruel e sinto-o aos poucos se esfarelando e sendo levado ao Vento. Vou então à Serne, o lar do rei das dádivas e lá me sinto segura, apesar de longe de casa. Um lar que não me pertence. Serei o impostor nesse momento, mas que delicioso prazer em usurpar a ilusão do que me pertencerá.
Uma folha. Havia uma folha seca no chão. Quase a peguei para mim. Ensinaram-me a não recolher o que não me pertence, um objeto esquecido, perdido, mas acho que isso não se aplicava àquela folhinha. Ela pareceu especial, uma asan*. Esta palavra pode ser entendida como "nova folha", isso porque, certa vez, uma folha especial brotou em uma árvore que antecedia aos homens. Esta folha não era como as outras, pois diferentemente das suas irmãs, aprendeu a sonhar. Asan escutava histórias trazidas pelo Vento e um dia, em segredo, pediu-lhe que a libertasse antes que o Outono chegasse e ela perdesse sua jovialidade. O Vento o fez e a carregou por todos os mundos. Aquela folhinha vira mais que eu e agora estava secando, mas vivera tudo que poderia. Quanto orgulho uma folha pode causar.