Preferia discos de Punk Rock e Música Clássica. Passava horas circulando pela casa à luz de velas só porque achava divertido, e romântico. Uma ficava na sala e outra no corredor. O corredor – extenso como num casarão – era onde ficavam seus quadros. réplicas de Picasso, retratos de Chaplin, pinturas de artistas brasileiros herdadas (deixadas) pelos antigos donos da casa.

 

Caminhou até o quarto e a abertura da ópera “Fausto” soou numa altura “adequada”. Sentou-se na cama. Cama alta… seus pés ficaram se balançando no ar de um jeito infantil; chegou até a sorrir. Ficou alguns minutos balançando os pés e encarando as sandálias. Pequeno demais pra alcançar o chão, mas grande demais pra chorar pedindo ajuda para descer.

– Mostre os dentes, Glauco! – E então o velho cachorro, ainda recordando suas habilidades de cachorro adestrado, mostrou-lhes os dentes e depois balançou o rabo, feliz. O cara "meio-velho" tirou um biscoitinho canino do bolso e atirou. O cachorro não correu... apenas andou um pouco mais rápido e muitas vezes arrastava as patas de traz no piso escorregadio da cozinha e do corredor.

 

(“Quando você mostra os dentes... Quando você se impõe demais, quando você briga com alguém... o que você sente?”). Ainda sentado na cama com os pés balançando, o cara "meio-velho" encarou o vazio da parede branca como se fosse uma pessoa. Encarou com dureza a parede e sentiu como se pudesse ver alguém. "Essa voz... era eu?".

(“Sente vontade de brigar? Sente vontade de MATAR alguém? Agora que não tem ninguém... Sente vontade de correr? De chorar? Você precisa sentir alguma coisa, amigo...”).

 

(“Pensando com praticidade: o que se quer mesmo é que aquela pessoa que nos oprime... desapareça da face da Terra. Portanto, pra todos aqueles que se sentem agredidos por outras pessoas a pena mínima ao réu, seria a morte. Sempre. Mas veja bem, agora um virus deu cabo de todas as sentenças...”). Sorriu. Ou pensou que tinha sorrido. Mas talvez ainda estivesse sério.

 

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Por alguns minutos, quando a noite chegava o cara "meio-velho" se sentia um cara "meio-morto"... uma coisa viva e pulsante vagava por uma casa vazia. Esquecida. As lembranças de si, pareciam lembranças de um outro cara. E tantas outras coisas mais. Beijos, afagos, shows de Rock, noites suadas de amores que muitas vezes nem eram reais; sexos nem sempre bem-feitos... se lembrava de uma por uma. Nitidamente.

Os detalhes dos seus corpos. Seus cheiros, principalmente se lembrava de seus sorrisos. Cada uma delas passeando por sua memória e lhe causando algum tipo diferente de arrepio, ansiedade, saudosismo, ou dor... Sentia-se doente (seria o virus?). Se sentia um cara "meio-assassinado".

 

(“Pensamentos que machucam... pensamentos que envergonham. Oh... Deus... vergonha de coisas que se pode encontrar no espelho!! A memória só pode funcionar dessa maneira: Sem filtro. E a memória: É TUDO que nos resta no fim... No fim... do mundo.”). Essas palavras ele escreveu na agenda, esperando que fizessem se sentir melhor. Mas, no fundo sabia que as coisas não eram tão simples e fáceis assim.

(“E por fim. Aceito o fato dos fatos: A VIDA... NÃO É JUSTA.”).

 

... Um frio de repente tomou conta da casa.

 

O cara "meio-velho", além de sentir os pelos dos braços se arrepiarem e também o nariz gelar quase instantaneamente, teve uma sensação esquisita... e antiga. Uma sensação que há muitos anos não sentia... a sensação de que não estava mais, sozinho na casa.

 

- Alguém aí...?!

 

*Continua amanhã...

 

Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 02/02/2024
Código do texto: T7990827
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