A MALDIÇÃO

 

 

 

Uma casa pode ser abençoada e amaldiçoada ao mesmo tempo pra uns ou para outros, em aspectos diferentes. A madrugada chega… amanhã eu volto pro lugar que escolhi quando tive escolha. Não é nem menos e nem mais amaldiçoado que aqui. Mas é a maldição que eu escolhi.

Pra minha filha, essa casa é uma benção, ela sintoniza perfeitamente com ela. Para mim, andar aqui durante a madrugada é como reencarnar num homem que faleceu em 2016. Eu lembro do dia que decidi ir embora… Existe uma espécie de magia quando decidimos que algo realmente chegou ao fim. Isso vale para términos de relacionamentos. Quando o término é convicto: não existem muitos gritos e escândalos. Alguém simplesmente arruma suas coisas e sai. Porque não faz mais parte daquilo. E a pessoa que fica, aceita com tristeza, talvez com raiva de coisas que foram feitas quando a luta pela manutenção ainda era bravamente lutada. Mas a pessoa simplesmente SABE que a outra precisa ir. E que haverá um tempo de tristeza que se converterá em alegria, mais cedo ou mais tarde.

Eu andei pela casa com todas as luzes apagadas como fazia antes. Fiz um chá, como fazia antes. Fui até a janela e observei que a maioria das luzes dos outros prédios estavam apagadas, como fazia antes… E me senti incrivelmente CALMO por saber que boa porta deste “mundo” que me cerca, agora está dormindo. Exatamente como me sentia antes.

A noite já era meu horário preferido. Hoje eu sento numa pracinha e observo as estátuas e minha gata às vezes me segue e se senta ao meu lado. Eu dou a ela todo direito de compartilhar solidão comigo. (…) Este apartamento… é amaldiçoado. Ele é amaldiçoado por mim e PRA mim. Existe um espectro d’um Henrique que continua aqui zanzando pela casa e ele tem 29 anos e um infinito de tristeza no coração. Ele anda pela casa sem que ninguém mais o veja, pensando se um dia sua sorte mudará. Ele mal possui autoestima; ele não sabe pra onde ir, com o quê trabalhar, com quem namorar… Ele nem mesmo tem certeza absoluta se ainda há nele, alguma sexualidade. (…)

Então ele vaga pela casa imaginando situações fictícias, crônicas, histórias de horror. Ele tenta emancipar seu corpo e mente e sua PRESENÇA no planeta, com a arte da escrita. Eu estou vendo ele agora. Ele esteve comigo o dia inteiro, me assombrando… Ele esteve comigo enquanto eu almoçava com minha família, enquanto eu conversava com meu irmão, enquanto eu abraçava minha minha mãe. Se eu abrisse os olhos e olhasse pro lado, ele estava comigo… Parado, se lamuriando por não ser feliz. Ele não consegue perceber que ele sou EU e que no final das contas eu fui prum outro lugar e lá eu fiquei feliz… Ele pensa que eu ainda estou aqui.

Arrumei minha mala, pus alguns livros e discos pra levar. E ele estava sentado na cama me olhando, incrédulo. “Para onde você pensa que vai?!”… “você não tem pra onde ir, seu lugar é aqui…”. Eu não me dei o trabalho de responder, apenas continuei arrumando minhas coisas. Ele não é o único espírito aqui. Assim como na praça que me sento todos os dias, existem muitos outros espíritos inquietos. Eles nem sempre são maus…Inclusive alguns deles cuidaram de meu gato quando ele esteve doente, antes de falecer. Eles lhe deram algum conforto. Não são maus… alguns são, outros não. Outros são só pessoas assim como esse Henrique, morto de 2016… São confusos, apenas. Não viram que o tempo passou.

 

 

Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 26/12/2023
Código do texto: T7962003
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