O CELULAR
No modo silencioso, como toda pessoa que em sã consciência
Toca o celular
Largado, encima da cama.
Observo de longe,
Não interessa quem ligou...
Não deu pra ver quem realmente ligou.
Volto a lê Friedrich Nietzsche
Ninguém fala mais Friedrich Nietzsche
Só Nietzsche!
"Eu não sei o que quero ser,
Mas sei muito bem o que não quero me tornar"
E esse celular eu não quero atender...
Para de vibrar, finalmente!
Volto a concentrar-me na leitura...
Onde estava mesmo?
Ah, sim...
No que você se recusa a se transformar?
Pense nisso.
Vibra de novo!
Não atendo!
Não vou atender!
Deixa-me lê as minhas coisas em paz!
Que torturante que é esse celular!
Para de vibrar, porra! Para de tocar!
Pego um bom vinho
Pego uma taça
Levo comigo meu livro
O celular fica onde deve estar
Largado, isolado
Na cama, mas sem Madonna
Vibra novamente!
Que saco!
Essa gente não me esquece porquê?
É domingo de manhã
Meu dia de lê com mais calma
Deixem-me em paz, que porra!
Aí, penso:
E se for importante?
Não interessa!
Que importa agora é só minha leitura e meu vinho!
E se for cobrança?
Também não me interessa!
Um silêncio paira no ar
Que maravilha!
Finalmente paz que quero!
Volto a lê, a recomeçar a lê...
Aonde estava mesmo?
No que você se recusa a se transformar?
Penso:
Não vai mais tocar?
Não vai mais encher meu saco?
Não vai mais ligar?
Silêncio, um total silêncio!
O que é assustador!
Pausa!
Celular imóvel
Parado, sem movimentos e vibrações!
Não quero mais pensar nisso, nesse celular!
"Você vive hoje uma vida que gostaria de viver por toda a eternidade?"
Gostaria de viver, Nietzsche!
Fico tenso!
Olho para o celular!
Quem será que estava me ligando?
E se for a minha noiva, pra dizer que já era essa porra de noivado?
Que ela está fugindo para uma ilha deserta com o amante?
Que não seja isso!
E se for?
E se realmente ela não quer mais casar comigo?
Não quer mais ver a minha cara
Nem pintado de ouro
Mas, isso é clichê, né?
Paranoico: E se for ela?
E se for o meu advogado querendo mais dinheiro?
Disse que iria cobrar a mais pelos seus serviços
Que ganha pouco!
Advogado maldito!
Ganha muito dinheiro
E ainda quer mais? Canalha!
Vamos Ronald
Concentra-se na leitura!
Friedrich Nietzsche é foda!
Ninguém fala mais Friedrich Nietzsche
Só Nietzsche!
Só Nietzsche, porra!
Vibra o celular!
Saio correndo feito doido
Jogo o livro pelo ar!
Pego o celular, atendo! - ALÔ?
- Prezado cliente, Ronald Sá, você foi contemplado!
Ah, não! Uma ligação de São Paulo!
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Ronald Sá, é ator, dramaturgo, diretor e professor de teatro. Tem mais de 30 textos teatrais escritos, tanto infantil e adulto. Mora em São Luís do Maranhão. Começou a se interessar pelas letras desde criança. Formado em Artes Cênicas, tem um grupo de teatro na periferia da cidade maranhense, o Núcleo de Produção Teoria das Artes, no Anjo da Guarda, bairro cultural, celeiro de vários artistas. Atuou, escreveu e dirigiu 26 espetáculos. No momento, escreve sua primeira série e e seu primeiro livro sobre o mundo teatral.