É (TAMBÉM) SOBRE ISSO

A pobreza, este fenômeno multidimensional e multifacetado, nos olha diretamente nos olhos todos os dias.

Nós, que trabalhamos com a escuta qualificada, que estamos lá, num ambiente "personalizado", bem precarizado, insalubre, sem isto e sem aquilo, cuidadosamente pensado para que "o pobre se sinta em casa", estamos lá... E nós vimos e ouvimos.

Ela, a pobreza, sofre de depressão crônica. Em alguns casos agravada pela situação socioeconômica pós pandemia. Perda do que já quase não tinha: renda, teto, alimentos (em quantidade e qualidade suficiente), dignidade...

Vínculos também foram perdidos, em muitos contextos. Ela, a pobreza, nos contou os seus processos de violação, violência, desolação.

Algumas vezes perpetradas pelos próximos, pelos que deveriam proteger. Outras vezes a violência ou violação foi deflagrada pelo próprio Estado - o que também deveria proteger.

Ela, a pobreza, gênero feminino, pele preta, nos contou.

Entra cotidianamente em nossos gabinetes acalorados, de cadeiras tortas, enjambradas. Se senta, nos fita diretamente nos olhos e nos conta.

Muitas vezes ela, a pobreza, assume gênero masculino também. Não na maioria, mas muitas vezes. A cor da pele, em geral, permanece em degradê para tons mais "fechados".

Mas também se veste de pele não preta, porque essa também perdeu emprego (ou trabalho ou renda), na pandemia. Também tem seus processos de adoecimento e empobrecimento, de esgarçamento da saúde mental.

E ela, a pobreza, que muitas vezes é de fato unipessoal - mas que também se reproduz continuamente - vai ganhando corpo, vai se fazendo robusta de diversidades, de várias peles, rostos e idades, num movimento "quase democrático".

Nós, profissionais da escuta socioassistencial, estamos lá. Dia a dia, face a face. E tentamos dizer para ela, para a pobreza que nos encara, que existe este ou aquele caminho a ser percorrido.

Mas ela, a pobreza, sabe que, em última análise, é simbiose da acumulação de riquezas. Sim, se há concentração em um lugar é porque há drenagem em outro. Acontece com a água e com recursos financeiros.

Ou seja, no sistema em que vivemos, não é coerente acreditar em "humanização" ou "ponderação" deste. O capitalismo selvagem - faca nos dentes e sangue nos olhos, com foco na acumulação - não é passível de domesticação. Ele está cada vez mais "financeirizado" e supõe, necessariamente, a existência dos "sobrantes".

E insiste em dizer a eles, aos sobrantes que corporificam a pobreza, que é uma questão de "mérito":

- Se esforce mais! Você vai sair dessa!

Ela, a pobreza corporificada, acredita e absorve o discurso. Lembra ainda que "Deus proverá e sua misericórdia não faltará!". Agradece, por continuar a sobrevida de miséria. Se endivida, porque "dentro da palavra dívida, existe vida", já dizia a campanha fofa do "banco santo" (aquele banco do santo André).

Subjetividades cada vez mais cooptadas pela lógica capitalista, a lógica da acumulação a partir da superexploração. E direitos trabalhistas? Para quê?

Ah, sim. Vale mencionar: a pobreza também é lembrada em campanhas de (re)eleição.

E nós, profissionais da escuta, servimos com dor ou servimos a própria dor (da "falta" disto ou daquilo).

É preciso ter atenção.

Então, sigamos. Servidores sim, servos do sistema, não!