Eu, Você, Nós

Não é à toa que, em meus atendimentos, quando a queixa da pessoa à minha frente se trata de seus relacionamentos, sobretudo os românticos, procuro fazer com que ela pense sobre o seu “Eu”. O objetivo aqui está em delimitar fronteiras, circunscrever territórios, fazer distinções e diferenciações. Isso porque para encontrar-me com o outro penso que devo, antes, encontrar-me comigo mesmo. Pois, uma relação só se sustenta pelo tempo que tiver que se sustentar, ou seja, o tempo que lhe fizer sentido, se houver uma clara, transparente e benéfica separação entre o que trazemos conosco para aquele espaço que procuramos compartilhar e o que o outro traz com ele. É como escreveu Cardella*: “a experiência do casamento carrega diversos significados e sentidos. Ao nos encontrarmos intimamente com alguém, nunca estamos de fato ‘sozinhos’, há mais ‘gente’ ali”.

Ou seja, o que trago em minha bagagem existencial que tem contribuído para a maneira como aquela relação se desenvolve? Temos crenças, expectativas e ilusões acerca de relações amorosas. Mais que isso. Temos modelos que procuramos imitar, referências que buscamos seguir, sem levar em consideração que é de nossa responsabilidade construir algo diferente, algo realmente nosso, distante das contaminações de vivências alheias, vivências que não possuem nossas particularidades e que, portanto, não devem ser repetidas irracionalmente.

Se paro para pensar, se analiso a mim mesmo, se me questiono sobre os modelos de relacionamentos que acompanhei ao longo da vida e se entro em contato com as minhas próprias convicções sobre o que esperar de uma relação, começo a delimitar aquela benéfica distinção entre mim e o outro. Começo a me reconhecer naquela relação. Começo a entender o que tenho lançado a ela, quais as expectativas e quais os objetivos. Posso até compreender que muitos desses ideais são ilusórios, inalcançáveis para a nossa realidade. Posso entender que, de forma desavisada, tenho responsabilizado o outro por carências cuja satisfação depende de mim.

Como também posso começar a entender que há particularidades do outro sendo projetadas em mim. Não que, então, eu vá conscientizá-lo de suas projeções. Ao menos não me sentirei responsabilizado por concretizar projetos que não projetei. Não assumirei a total responsabilidade por algo que, para ter sucesso, depende de todos os envolvidos.

Daí a importância de delimitarmos os nossos campos fazendo a separação entre o que é nosso e o que é do outro. Até para não nos misturarmos, não nos confundirmos, não cairmos na cilada de que, de agora em diante, seremos apenas um. Porque não é verdade. Intimidade não substitui individualidade. Continuaremos sendo quem somos, agora somados ao outro. Pensar que seremos um apenas nos faz questionar sobre nossos desejos. E até sobre os desejos do outro. É como se, a partir de então, os desejos devessem ser os mesmos, as vontades serem imediatamente recíprocas e as formas de pensar em nada divergentes. Isso leva a ruína. A beleza de uma relação está no encontro entre humanidades. E o encontro só é satisfatório quando há abertura para o diferente.

Se não seremos um, construiremos algo em comum através da intimidade que desenvolveremos. Manteremos nossas singularidades. Não passaremos por cima delas. Nem as desrespeitaremos. No entanto, criaremos algo que se colocará entre nós, algo apenas nosso, exclusivo a nós, pelo qual passaremos a viver senão completamente, ao menos com prioridade. Construiremos o nós a partir da junção de nossos “eus”. “Eus” que permanecerão nos acompanhando até o fim, que protegerão nossa identidade, mas que abrirão espaço para que, de nossa intimidade, surja aquilo que caracterize a nossa relação!

Com tudo o que falei, acho que posso resumir que o primeiro passo para se ter um bom relacionamento é o desenvolvimento do autoconhecimento. É importante que nos conheçamos e reconheçamos, pois só assim nos permitiremos a conhecer o outro, livres de nossas projeções, idealizações e expectativas!

(*) Trecho do livro “Laços e Nós: amor e intimidade nas relações humanas

(Texto de @Amilton.Jnior)