Um momento de glória pode ser destruído por um simples gatilho

A realidade descortinou as seduções abjetas da ansiedade. Por um tempo fui dona de mim como já não me lembrava a sensação de ser. Sacrifícios recompensados e o melhor cenário possível manifestando-se. Talvez sonhos não tenham idade nem um rígido prazo de validade. Minha experiência poderia servir de inspiração para alguém que passou por muitos desvios de caminho até reencontrar-se.

A aula acabou meia hora antes do previsto. Se eu tivesse esperado um pouco antes de voltar para casa. Se eu tivesse procurado pelos meus amigos, eles estavam lá, poderíamos dar um rolé no shopping. Perdi-os de vista. Por outro lado, eu estava exausta e queria almoçar, colocar os pensamentos em dia, curtir aquela grande vitória, afinal de contas, fiz por merecer, embora tenha a impressão de que não fui boa o suficiente.

Aproximando-se de casa, vi o namorado da minha vizinha metida do apartamento 13 e a vizinha fofoqueira do 14. Para essa gente eu sou só uma esquisita que não se casou. Querendo ou não, comparo-me muito com essa vizinha 10 anos mais jovem do que eu porque sinto-me muito inferior à ela, o tipo de pessoa que precisa vlogar o namoro e gabar-se de ser perfeita, privilegiada, ter família de comercial de margarina, um namorado perfeito e ostentar o padrão de vida nas redes sociais. Senti-me um verme, uma piada, alguém que existe só para ocupar espaço porque não tenho mais sonhos, não tenho esperanças de nada, só quero me manter viva para cuidar dos meus pais, é por eles que acordo.

Todas as minhas virtudes parecem insignificantes perante uma sociedade que respeita apenas uma mulher acompanhada de um homem. Fiz uma apresentação considerada "acima de todas as expectativas" pelo próprio professor, dediquei-me sobremaneira, tive o apoio da turma, fui até aplaudida, porém tudo perdeu o valor quando vi que não importa o que eu faça, minha vizinha está sempre a 20, 30 passos à minha frente e eu nunca poderei alcançá-la. Desde o início, ela nunca foi simpática comigo, sempre virou a cara e bateu porta ao me ver, nunca quis conversar; quando precisa cumprimentar é o tal do "oiê, tudo bem?" de alguém que nunca quereria me ver bem. A família dela e a vizinha do 14 acham divertido tirar sarro de quem não se forma com 21 nem se casa aos 25 (meu caso), essas pessoas zombam da doença neurodegenerativa do meu pai, caçoando dos esquecimentos dele como se no futuro estivessem imunes de passar por isso.

Quando o neurologista deu o diagnóstico, por mais que fossem grandes as desconfianças, ainda assim foi e ainda está sendo bastante difícil de aceitar. O próprio médico disse que aquele pai proativo, disposto, protetor não voltará mais, ficará só na lembrança, e que "só vai piorar". Não precisa possuir grande conhecimento em medicina para compreender que é difícil sorrir sabendo que meu pai um dia dependerá de nós para as necessidades mais básicas, não nos reconhecerá mais e se tornará mais frágil que um pássaro. E é muito triste viver o pior momento da sua vida quando os vizinhos ao lado fazem questão de tripudiar e expor uma felicidade que chega a ser irritante, como se o tempo todo fosse imprescindível mostrar ao mundo por meio de stories e overpostings no Instagram que o papai e a mamãe se amam e "o amor venceu", que a jovem de 25 anos namora um jornalista e vive um conto de fadas esquerdista, que ele até veio morar com a família, já é íntimo da vizinha do 14 e tratado como filho por ela e que antes dos 30 essa exibicionista já será mãe e o pai dela será avô, coisa que meu pai nunca será porque minha vida não é fácil como a dela, que sempre foi (e ainda é) muito mimada e teve (tem) tudo que quer de mão beijada, alguém que nunca soube e dificilmente saberá o que é sofrer, ter uma porta fechada, ouvir um "não" da vida.

De que adianta eu ser inteligente se estou solteira e mal consigo um estágio para poder me formar no outro curso? De que adianta ter um vocabulário "rico" se meus livros nunca viralizaram no Wattpad? De que adianta ser comunicativa e assertiva se não tenho um namorado? Se as vulgares e burras são as inspirações dos jovens de um modo geral? Se eles não leem nem 140 caracteres e aguentam só vídeos de no máximo 15 segundos?

Todas as lágrimas engolidas vieram à tona e os esforços empregados para contê-las tem-se mostrado em vão. De terça para quarta-feira fui acordada por um pesadelo no qual meu pai desapareceu e comecei a chorar; desde então sinto como se um elefante estivesse sentado em cima do meu peito e todos os meus traumas voltaram para fazer-me companhia, os traumas de 2014 a 2019 regressando (2012 e 2013 foram os últimos anos felizes da minha vida), pois não superei nada dessa sucessão de perdas, frustrações e desilusões, humilhações, só aprendi a engolir o choro, guardar tudo quietinho dentro do peito e dormir para esquecer. O que não tem remédio, remediado está.

As culpas que carrego dentro de mim despertaram. Os estilhaços dos sonhos destruídos ainda me ferem, eu não queria ter desistido, mas tive de aceitar que "não era para ser". Até hoje não é fácil saber que nunca serei a autora favorita de ninguém, que aquela alegria de fazer o que amava não existe mais, que tudo que me resta é só ganhar dinheiro para poder comprar alguns instantes de alegria com aquisições e comidas gostosas. Não quero mais me apaixonar porque quase morri da última vez em que apaixonei-me, não adianta gostar de quem não gostará/gostaria de mim; tenho de me conformar que essa vida de casar e ter uma linda família não deve estar no meu destino. Tentarei me acalmar porque não quero falar com os meus novos amigos sobre esse passado lacrimoso e amargo, não quero que saibam do que me aconteceu.

Estruturas podem abalar-se. Um momento de glória pode ser destruído por um simples gatilho. Espero voltar a ficar bem, ao menos dentro dos parâmetros atuais, porque os acontecimentos do passado roubaram para sempre a minha inocência e aquele brilho no olhar que costumava me guiar ao longo da jornada. E, sim, as dores me obrigaram a amadurecer, contudo, paguei com juros para saber o que hoje sei.

Marisol Luz (Mary)
Enviado por Marisol Luz (Mary) em 15/10/2023
Reeditado em 15/10/2023
Código do texto: T7909603
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