O DESAMPARO DA EXISTÊNCIA - UMA BREVE INTRODUÇÃO

O que é o desamparo? Em uma resposta direta podemos dizer que o desamparo é um estado ou sentimento de quem se sente sem proteção; ou de quem se sente abandonado à própria sorte em quaisquer aspectos da vida.

Uma resposta mais abrangente acerca do desamparo pode ser entendida como um estado ou sentimento de quem se sente sem proteção afetiva (do convívio familiar, da amizade e do convívio nacional), sem proteção social (de segurança material, de alimentação e de saúde), sem proteção político-moral (sistemas de valores que orienta a vida pública e privada), sem proteção religiosa (sistemas de crenças) e sem proteção científica (orientação racional de sentido para a vida individual e coletiva).

Nesta perspectiva o desamparo, enquanto sentimento de desproteção ou abandono, deve ser entendido como um estado de consciência que pode ser sentido tanto no plano individual, como também no coletivo.

A consciência do sentimento de desamparo talvez tenha sido uma experiência que sempre acompanhou o percurso da vida humana. Sabemos que a pré-história humana é um período da história cientificamente nebuloso e cheio de pontos cegos. Estudar os primeiros ancestrais primatas com características humanas foi e é um grande desafio arqueológico.

Pouco se sabe sobre este período tão longo de existência humana. No entanto, não é difícil de imaginar que foi na pré-história que deve ter nascido uma certa consciência do sentimento de desamparo presente entre os primeiros ancestrais humanos.

É possível que naquela época, àqueles primeiros humanos, já tivessem uma perturbadora consciência do sentimento de desamparo em relação ao seu corpo físico: a morte, a doença, a velhice, a fome e o desejo.

Havia também um estado perturbador em relação com a natureza: as tempestades de ventos, de chuvas, de raios e de trovões; os terremotos, as mudanças climáticas severas, os animais perigosos e as plantas venenosas e tantos outros fenômenos da natureza que permitiram desenvolver estado de consciência do desamparo.

Mas que tipo de consciência de desamparo este ensaio deseja abordar? A consciência da fragilidade da vida, o seu estado provisório e instável; a sensação de impermanência constante em tudo que existia na vida dos primeiros humanos e que ainda se faz presente no mundo atual.

Penso que é a partir da pré-história que esta consciência do desamparo nasce, uma vez que estes primeiros humanos se percebem como criaturas provisórias no próprio mundo em que vivem. O acidente fatal, a perda de alguém do grupo ou do bando por doenças, a dor insuportável, o horror e a penúria da vida na natureza sendo a causa e o efeito do desenlace desta espiritualidade do desamparo. A morte espreitando a vida de todos o tempo todo.

A consciência do desamparo, nos primeiros humanos, parece nascer do despertar de uma consciência trágica de que a vida não é segura e a rotina na natureza não é possível; tudo que acontecia na vida destes primeiros humanos e no seu entorno acontecia de forma cega ou ao jogo do acaso; ou seja, aquilo que tempos depois os sábios e filósofos chamariam de contingências.

Toda a vida humana parecia ser esmagada pelas forças incompreensíveis da natureza. E é diante desta natureza desconhecida que irá despertar o sentimento de desamparo. Ela, a natureza, sendo compreendida como algo muito poderosa e assustadora agindo de dentro para fora e de fora para dentro no corpo humano.

Essas forças incontroláveis da natureza também agiam em relação à própria natureza. O desamparo, portanto, seria então este estado de consciência, entre os primeiros humanos, em relação às forças incontroláveis do mundo em que viviam.

Ainda hoje, no tempo presente da história humana, parece que carregamos de forma inconsciente aquela antiga espiritualidade ancestral da experiência do desamparo da longuíssima pré-história humana.

Depois da pré-história todas as civilizações desenvolveram narrativas mitológicas trágicas que abordavam temas acerca do desamparo em seu cotidiano. Os Gregos Antigos, por exemplo, produziram narrativas trágicas em seus mitos, em suas peças teatrais, bem como na filosofia e na vida política que abordavam a questão do desamparo.

Mas de que forma os Gregos Antigos abordavam, em suas narrativas, o tema da espiritualidade trágica do desamparo? De maneira geral, os mitos trágicos desta civilização narravam o desamparo como um estado de consciência de que a vida humana se encontra sempre vulnerável à todo tipo de forças externas.

Tais forças externas podem ser provocadas por razões divinas, pela natureza, por acontecimentos políticos e sociais que esmagam o cotidiano da vida de qualquer pessoa.

A abordagem do desamparo nas narrativas mitológicas dos Gregos Antigos em relação a liberdade de escolha, por exemplo, era entendida como uma miragem na vida de qualquer ser humano. Por quê? Porque a vida de qualquer pessoa era entendida como destino, um destino que era cego e indiferente aos sentimentos humanos e à sua própria vida.

Tudo era contingência: a vida dependia da sorte ou do azar regida pela deusa Tique (depois chamada de Fortuna pelos romanos). Por isso, a vida de qualquer criatura humana era atormentada pela contingência. A espiritualidade trágica do desamparo era este estado de consciência de que os deuses, a natureza, o universo e tudo no entorno era indiferente a vida humana.

Somos uma espécie de abandonados à própria sorte, não há ninguém cuidando de nós. Somos uma espécie que vive um exílio cósmico. Era esta a sensibilidade trágica que os Gregos Antigos desenvolveram para compreender o desamparo.

O que nos ensina esta espiritualidade trágica do desamparo dos mitos dos Gregos Antigos? Que não somos suficientes. Toda vida humana é insuficiente. A ideia ou crença de que uma pessoa possa governar a sua própria vida, de que a autonomia individual, ou mesmo, uma autossuficiência seja possível não passa de uma miragem humana.

O que mais esta espiritualidade trágica do desamparo poderia nos ensinar? Preparar o indivíduo para uma educação emocional e intelectual resiliente. A consciência trágica do desamparo pode ser uma forma de fortalecer o indivíduo diante das adversidades não controláveis da vida.

As perdas e danos faz parte do viver. A espiritualidade trágica do desamparo dos Gregos Antigos também traz uma grande sabedoria: a vida humana não pode ser pautada pela arrogância do excesso de confiança narcísica que insiste em prevalecer nas civilizações do passado e do presente. A consciência do desamparo ensina paciência e humildade para viver.

Séculos e séculos depois, em uma outra fase da vida humana, organizada na forma de civilizações ocidentais, um pensador europeu chamado Sigmund Freud, do século 19, afirmava que os seres humanos de sua época ainda trazia este sentimento de desamparo oriundo da pré-história e de outras civilizações antigas.

Freud afirmava que o ser humano ainda se encontrava imerso em um mundo que lhe provocava dores e horrores, e isto vinha tanto do corpo como também do mundo externo, sobretudo, das relações de um ser humano com o outro; esta experiência relacional com o outro intensificava ainda mais o desamparo em razão dos horrores e das dores da vida civilizada.

Segundo Freud, o sofrimento psíquico da vida humana se dá em razão da própria cultura; uma vez que qualquer paisagem cultural é marcada pela violência da repressão explícita ou implícita (consciente ou inconsciente). Qualquer cultura é um embate contra a natureza interna que opera no ser humano que, por vezes, não consegue exercer o seu controle (seja esse controle mitológico, religioso, racional ou moral).

O ser humano para Freud tem uma existência desamparada tanto pela ação da natureza que nele opera de forma ingovernável, quanto pela cultura que nele o reprime e quer governar.

Friedrich Nietzsche, também um filósofo do século 19, entendia que o pensamento trágico não era para afirmar um sentimento de pessimismo, de ressentimento e de resignação à vida. Segundo ele, houve um mal-entendido filosófico sobre o significado do pensamento trágico - que ia de Aristóteles até Schopenhauer - como sendo uma educação sentimental para nos depurar do “terror de um perigoso afeto”.

Ao contrário, para Nietzsche, o pensamento trágico deve ser direcionado “para além” dos sentimento de “terror e da compaixão”. O pensar trágico tem haver com a “transvaloração de todos os valores” que nos proporciona sentimentos “para sermos nós mesmos”, bem como “o eterno prazer do devir”.

O pensar trágico para Nietzsche tem haver com o “ser” e o “devir”; tem haver com “o dizer-sim a vida”; tem haver com “a vontade de vida” mesmo diante dos “seus mais obscuros e mais duros problemas”. Para Nietzsche, o sentimento trágico tem haver com a vida, com a vontade de vida que se alegra mesmo diante do sacrifício do viver. “A vontade de vida, que se alegra da própria inesgotabilidade” do sacrifício.

Nietzsche enxerga no desamparo possibilidades do viver, o trágico é um fenômeno constituinte da vida que não pode ser negado e nem pode anular a vontade de viver.

Estou convencido que o nosso presente histórico ainda carrega os reflexos do desdobramento daquela "consciência trágica do desamparo” despertada por aqueles antigos ancestrais de outrora. A compreensão de uma existência do desamparo deve ser entendida numa perspectiva de longa duração.

Se por um lado, deve ser levado em conta os longos tempos da pré-história como experiência primeira do desamparo da vida humana, por outro lado, é preciso perceber o quanto este sentimento trágico do desamparo percorreu outros tempos e civilizações; bem como alcançou o nosso presente momento.