O combo perfeito da autodestruição
Eu sou jornalista. Ou quase. Devia ter me formado na faculdade em 2020. Fiz o meu TCC, cumpri as horas de estágio e tirei notas altas em todas as disciplinas. A coisa mais complicada na minha vida era o TCC. Enfrentei muitos obstáculos, ainda mais por causa da pandemia. Eu imaginava que… se houvesse algum motivo para eu não me formar, seria o trabalho de conclusão de curso.
Engano meu.
O problema todo estava nas milhares de horas complementares que empurrei com a barriga ao longo do curso. Resolvi realizar as atividades extras apenas no último ano. Crianças, não façam isso. As diretrizes diziam que os responsáveis pelas horas complementares deveriam analisar em até 30 dias os anexos das atividades postadas, mas não foi assim. Em novembro de 2020, eu passei o mês inteiro postando anexos e só obtive as respostas em janeiro do próximo ano, me dizendo que eles foram reprovados por diversos motivos: erros em códigos de barras dos comprovantes, imagem ruim e, alguns, não havia uma explicação. Foi reprovado e pronto.
Então, eu fiz a rematrícula da faculdade para tentar consertar o problema enquanto sustentei a mentira de que havia me formado, mas como era tempo de pandemia, a faculdade não podia realizar a formatura. Na verdade, eu me aproveitei da situação para dizer que tinha me formado. Faculdade nenhuma estava realizando formatura mesmo.
O tempo passou. E eu passei dois anos vivendo de rematrícula e tentativas frustradas de postar horas complementares. Cheguei a mandar e-mails para os responsáveis e nunca obtive respostas. Conversei com meu coordenador do curso. Ele se propôs a me ajudar, mas eu ignorei sua ajuda porque não queria passar por nenhuma burocracia. Além do mais, ele já tinha tentado antes e não resolveu nada.
Em 2022, tomei a difícil decisão de trancar o curso. Motivo: desgaste emocional por não conseguir resolver os problemas e me formar. Meu esposo, bravíssimo, sugeriu que eu processasse a faculdade. Mas eu, como uma boa pacificadora, me recusei a gerar qualquer tipo de conflito e encarar processos burocráticos que pudessem me causar mais dor de cabeça.
Continuei sustentando a mentira de que havia me formado, porque queria ser o orgulho dos meus pais. Não queria que pensassem que os quatro anos que me esforcei na faculdade foram em vão ou que desperdicei o dinheiro deles. Mas esse ano, algo mudou e contei a verdade para minha mãe, por mensagem. Imagino que ela tenha ficado triste, mas disse que não contaria para ninguém. De certa forma, eu me sinto aliviada por ela não contar pro meu pai. Acho que ele não seria tão compreensivo quanto ela.
Ah, eu também sou escritora. Ou quase? Vamos lá. Eu escrevo desde que me entendo por gente. Quando criança, fazia fanfics dos contos de fada, mesmo sem entender o que era isso ainda. Eu me apaixonei pela língua portuguesa e pela literatura cedo, tinha uns onze anos quando aconteceu. Um dos primeiros livros que li foi O Guarani, de José de Alencar. Um clássico! Depois disso, eu não parei mais.
Eu era obcecada por histórias de amor e, quando tinha doze anos e meus amigos foram embora, fiquei tão solitária que alimentei minha mente com histórias que gostaria de viver. Ainda não escrevia, mas as ideias já coabitavam comigo.
Com o tempo, e a solidão, passei a me tirar do centro das minhas histórias imaginárias e comecei a criar personagens. Todos os dias eu fugia da realidade e imaginava os filmes mais românticos na minha mente.
Às vezes, eu considerava ser escritora, mas desistia quando percebia que era difícil, trabalhoso e árduo. Eu queria uma profissão que não me desse tanta dor de cabeça. Considerei arquitetura, até descobrir que envolve matemática. Considerei psicologia, mas eu não sei lidar com meus próprios problemas, quem dirá os dos outros? Considerei letras. Ah, como eu queria cursar letras. Parecia minha alma gêmea da intelectualidade. Minha mente flutuou com essa ideia até alguns professores se levantarem e tentarem dissuadi-la da minha mente. Ninguém queria que eu fosse professora. Mas eu não queria ser. Queria cursar letras porque amava os livros e as palavras. Só que na época, eu não sabia que era possível fazer esse curso sem me tornar professora. Então, desisti da ideia.
Entrei pra Jornalismo, mas não porque queria ser repórter. Eu queria ser editora e escrever meus livros. Mas o resto da história vocês já conhecem.
Eu me tornei escritora, de fato. Passei a escrever minha histórias, contos e poemas. Os últimos, eu fazia mais para desabafar. Escrevi dois romances que nunca foram publicados, porque os perdi para vírus no computador. Além do mais, na época, escrevia por escrever. Não imaginava ter que mostrar minhas histórias para os outros. Morria de vergonha e medo do julgamento e das críticas. Ainda hoje eu tento ser escritora. Mas só de pensar em ter que divulgar os livros e contratar pessoas para trabalhar neles, eu paraliso.
Quase fui confeiteira. Desde minha adolescência eu amava fazer bolo. Fazia muitos e ficavam bons. Descobri recentemente que muitas pessoas sentem dificuldade em fazer bolo de cenoura. Foi estranho, porque eu sempre fiz com toda facilidade. Nunca solou, nunca afundou, nunca queimou. Todos saíram perfeitos, não importava como eram feitos. Já fiz receitas usando ingredientes gelados (dizem que prejudica o bolo) e ficaram excelentes. Eu seria uma ótima confeiteira. As pessoas que provavam os bolos e sobremesas sempre me elogiavam, diziam que as receitas eram equilibradas e muito saborosas. Outras pessoas, até diziam que eu deveria investir na área, talvez abrir um negócio próprio. Minha mãe foi a primeira a apoiar a ideia, comprou um kit com bicos de confeitar, saquinhos e demais utensílios de cozinha. Um dia, eu tive uma ideia de fazer um bolo de cacau black 100%, com recheio de leite em pó e cobertura de chantilly preto, com alguns biscoitos em cima. Na minha mente, eles ficaram ótimos. Mas quando fui colocar em prática, só tive estresse e dor de cabeça. Minha mãe tentou me ajudar, mas eu não quis. Estava constrangida por passar o dia todo na cozinha e ver a receita dando errado. Depois desse dia, eu nunca mais tentei fazer bolo com corante e chantilly.
Eu quase fui desenhista. Desde criança eu domino a arte do desenho. Mas o meu favorito é o realismo. Amava ir ao museu e observar quadros hiperrealistas. Pareciam fotografias. Eu queria chegar a esse nível, mas tinha um longo caminho a percorrer. Comprava quadros, tintas e pincéis, mas a arte nunca ficava muito boa. Eu era infinitamente melhor com o papel sulfite do que com quadros. Eu desenhava capas dos livros que mais amava. Cheguei a ter um portfólio com os melhores desenhos. Uma vez, fui elogiada na escola por ter sido a única aluna que conseguiu desenhar com perfeição a obra de um artista famoso, que a professora colocou na lousa, como atividade. Ela dizia pros meus pais que eu deveria ser designer e que a profissão dá muito lucro. Meus desenhos eram bons, mas nem sempre. Eu desenhava por inspiração e não fazia isso todo dia, com frequência. Por isso, nunca evoluí na arte. Se tivesse dinheiro, teria feito um curso. Mas o problema todo era ter que praticar todos os dias, porque nem sempre eu tinha energia para desenhar. E nunca fui uma pessoa muito disciplinada.
Eu era cantora. Ah, isso eu posso afirmar que fui. Cantava na igreja. Alguns diziam que eu tinha um talento que eu nem sabia que tinha. Nunca gostei de cantar em casa, nem debaixo do chuveiro, mas a minha voz sempre foi bonita. No entanto, também precisava de investimento no canto. Eu desafinava algumas vezes, não sabia usar a respiração diafragmática, me engasgava no meio das canções e tinha crises de tosses horríveis. Muitas pessoas me disseram que eu precisava treinar o canto, praticá-lo, com exercícios apropriados para a voz. De vez em quando, eu tentava. Mas, como eu disse, nunca fui muito disciplinada. Logo, desistia, desanimava. Eu odiava minha voz, tinha dificuldade em ouvi-la nas gravações. Além do mais, era péssima de ouvido. Nunca soube diferenciar tons ou notas. Muitas vezes, cantava muito baixo ou com a voz muito sutil, como se tivesse medo de aparecer. Talvez fosse verdade. Mas ninguém me ensinou a mudar isso, só me apontaram os problemas.
Eu também acreditei que seria pastora, um dia. Amava pregar o evangelho. Amava a bíblia, só tinha dificuldade nas orações. Na igreja, muitos diziam que eu orava muito bem e até fiz abertura de vários cultos. Mas em casa, não conseguia me aproximar de Deus. Sabia que precisava de ajuda para lidar com minha mente e meus pecados, mas eu busquei tanto conhecimento bíblico que… sentia que ninguém ao meu redor seria apto para me ajudar. Soa arrogante, eu sei. Em minha defesa, eu tentei buscar ajuda algumas vezes. Mas os conselhos e respostas que obtive apenas comprovaram que tais pessoas não poderiam mesmo me ajudar. Não falo de pessoas quaisquer. Falo de liderança, gente que deveria saber o que fazer ou o que falar.
Não vou nem mencionar o despreparo de muitas pessoas que são jogadas em cargos altos apenas por possuírem algumas habilidades comunicacionais…
Mas enfim, eu amava pregar. Via tanta coisa errada dentro da igreja que, às vezes, só queria fazer igual Jesus: chegar chutando tudo e dizendo “fizeram da casa de meu Pai, um covil de ladrões e mercenários”. Queria pregar contra o pecado, falar sobre o amor de Deus, sobre redenção e sobre o reino dos céus. Queria expor a verdade do evangelho para as pessoas. Mas eu nunca soube quais pessoas. Quem estaria apto para ouvir a verdade? Eu me sentia como uma professora sem alunos. Além do mais, para pastorear uma igreja não era necessário apenas pregar. Tinha que aconselhar os membros, administrar o templo e amar a vida das pessoas. Eu teria que abrir mão da minha solidão para estar com os outros. Teria que direcioná-los, cuidá-los, protegê-los e amá-los. E não havia nenhum curso que me ensinasse a fazer essas coisas. Talvez, eu fosse uma excelente pregadora, mas uma pastora ruim. Afinal, amava pregar o evangelho. Mas não tinha noção do que fazer com as pessoas.
Eu me vejo como um pássaro, com lindas asas, enormes. Um pássaro que cresceu cheio de habilidades, podendo escolher qualquer caminho, pois daria certo em todos. Um pássaro que cresceu ouvindo sobre o quanto era inteligente, sábio e talentoso. Porém, que nunca ouviu que era amado, valorizado, querido e… aceito. Eu poderia investir em qualquer uma das carreiras que citei. Eu sou alguém que teria potencial para enriquecer num país escasso e ainda encher o bolso das pessoas de dinheiro. Nunca duvidei dos meus potenciais. Mas a vida inteira eu duvidei das pessoas. E da minha capacidade em lidar com elas.
Sou a porcaria de um pássaro lindo, enorme, porém largado em cima de uma árvore, sozinho, sem ninguém para ensiná-lo a voar, sem conseguir acompanhar os bandos. Um pássaro que sabe fazer um milhão de coisas, mas estremece só de pensar em lidar com os da mesma espécie.
Sou alguém que, se pudesse construir o próprio sucesso sozinha, eu o faria. Sei que preciso dos outros, mas sinto que eles não precisam de mim. Me vejo como uma linha de trem que não seguiu o rumo que as pessoas gostariam que tivesse seguido. Sou como uma caixa, que em vez de ser quadrada, é redonda desde a infância. E quando eles dizem A, minha mente ecoa um B. Se eles estão falando mandarim, eu domino qualquer outro idioma. E não é proposital.
Eu cresci e me implodi. Meu corpo está cheio de raízes das reflexões que faço, marcado com meus poemas e histórias, as massas de todos os bolos que eu fiz, a tinta da caneta e o grafite do lápis de toda minha arte, as palavras que engoli antes mesmo de pronunciá-las. Meu corpo criou raízes. Elas são tão imensas por dentro que não me cabem. E continuarão crescendo apenas no subsolo, enquanto a pressão externa for maior do que a interna.
Tenho muitos talentos. E se eu pudesse trocaria cada um deles pela habilidade de interagir com as pessoas. Porque no fim, isso é o que mais importa. Ninguém é alguma coisa sozinho. E estou cansada de sentir que alguém deveria me ensinar a fazer coisas que os outros sabem fazer naturalmente, como conversar.
Eu me vejo como uma obra de arte maravilhosa, presa na parede de um museu, cercada por um vidro. Muitas pessoas param para admirar. Cobrem o quadro de elogios, mas ninguém deseja comprá-lo. Ninguém quer levá-lo para casa. Ninguém quer amá-lo e cultivá-lo.
Sabe aquela sensação de ser uma pessoa legal, porém não tão legal a ponto de alguém apreciar sua companhia e escolher estar com você, mesmo tendo outras opções? Exatamente!
Sou uma promessa de sucesso que nunca se cumpriu, porque não importa o quão alto seja o edifício que construímos. Ele cairá, se não tiver nada para sustentá-lo, se as vigas forem fracas, se o chão estiver rachado, se os tijolos estiverem quebrados.
E eu, continuo aqui. Por fora perfeita, por dentro trincada. Cheia de feridas, cicatrizes e traumas. Como o combo perfeito… da autodestruição.