Arrumando a bagagem
Estamos todos com trinta anos. Apenas imagine. Mesmo que você seja mais velho ou mais novo. Mas vamos imaginar que nesse atual momento estejamos com trinta anos. E, então, fomos surpreendidos por uma convocação. Ao completarmos sessenta anos teremos todos, sem exceção, que nos encaminharmos ao deserto do Saara, onde será a nossa nova casa, onde estará a nossa nova realidade, onde passaremos o restante de nossos dias. Não dá para contestar. Essa ordem é daquelas que vêm de cima e, portanto, nada poderemos fazer a respeito. Só não faremos essa viagem se morrermos antes dos sessenta. Mas se alcançarmos essa idade, não tem jeito, o deserto será nosso destino.
Os anos se passam. Dia após dia. Mês após mês. Até que nós, agora com os traçados sessenta anos, fomos levados para o lugar predeterminado. Lembre-se de que tivemos trinta anos para nos preparar para esse dia. Estávamos avisados. Então tivemos a chance de nos despedir de pessoas especiais, tivemos a chance de concretizar sonhos que tínhamos e tivemos a chance de arrumar a nossa bagagem para que, uma vez no deserto, nossa estadia fosse a mais confortável possível. No entanto, mesmo avisados do que aconteceria, muitos de nós se encontram desprevenidos. Não imaginavam que o deserto era tão quente, então suas roupas não são das mais leves. Não imaginavam que ao anoitecer faria frio, afinal de contas estaríamos em um deserto, então se esqueceram das roupas mais quentes. Não se despediram de quem amavam. E deixaram tantas coisas pendentes. Não se sentem realizados nem satisfeitos embora estivessem avisados de que não teriam o que fazer, precisariam se encontrar com o deserto*.
Essa é apenas uma metáfora para algo bem mais complexo, profundo e impactante. É fato que não sabemos quando, nem em quais condições. Mas está dado que um dia iremos morrer. O nosso deserto é a morte. É para onde nos encaminhamos desde que nascemos. Isso está dado. Não há nada que possamos fazer contra esse fato. Iremos morrer. Teremos um encontro inevitável, talvez indesejável, com a morte. Mas temos até lá para nos prepararmos para essa nova realidade que nos aguarda. No entanto, tal qual aqueles que não se prepararam para o encontro com o deserto, que não colocaram roupas adequadas em suas bagagens, nem levaram tendas nas quais pudessem se abrigar, ou não se despediram adequadamente daqueles que para trás ficaram, muitos de nós também não se preparam para o encontro com a própria finitude: não amam a quem deveriam amar, não olham para a vida com sede por aprender, não cultivam nas pessoas boas sementes e não permitem que em seus corações sejam plantadas as sementes do amor. Vivem despreocupados. Como se o grande dia nunca fosse chegar. Como se fossem imbatíveis. Como se fossem importantes demais para que a morte os encontrasse.
Mas ela vai nos encontrar. Não importa onde estejamos. Nem quem sejamos. Não importa se teremos muito ou pouco dinheiro. Se nossas posições serão de prestígio ou de anonimato. Para todos, inevitavelmente, a morte dará o seu apito final, quando precisaremos descer do trem da vida e seremos, então, absortos a essa nova realidade que não sabemos ao certo como é. Como estamos nos preparando? O que estamos colocando em nossa bagagem? Como faremos essa travessia? Estamos perdendo tempo com assuntos nefastos e banais? Ou será que estamos cientes do fato de que cada segundo é valioso e, então, buscamos fazer o nosso melhor em cada um deles? Estamos conscientes de que o fim é a única certeza da qual nos dispomos? Ou será que estamos ignorando que o tempo passa, ligeiro, sem cessar?
Aqueles que tiveram todo aquele intervalo de tempo poderiam ter ido em busca de informações sobre o deserto, afinal, tiveram tempo o bastante para a mais perfeita das preparações. Não sabemos ao certo quanto tempo teremos, sabemos apenas que, dia após dia, esse tempo acaba mais um pouquinho. Até que acabará em definitivo. Que sejamos iluminados e esclarecidos. E que nossas escolhas sejam guiadas pela consciência de que, em algum momento, faremos a travessia. Que em nossa bagagem estejam os aprendizados da vida e os amores que emanamos.
(*) Essa metáfora foi baseada em uma entrevista da doutora Ana Cláudia Quintana Arantes para o programa Provoca, apresentado por Marcelo Tas na TV Cultura.
(Texto de @Amilton.Jnior)