Aquele da Cozinha

Semana que vem começa uma nova tour, mais um livro para divulgar. Como uma espécie de procissão, Gramado é uma das cidades do roteiro, e a única pergunta que me aguça a curiosidade é qual será o menu da noite.

Eu escrevo e de alguma forma o Fernando consegue transformar aquele livro em um banquete. Já faz parte de mim viver isso, faz parte de tudo que escrevo. Acho que simplesmente não conseguiria escrever o próximo parágrafo sem reviver esse momento.

É engraçado como tudo se encaixou, e agora a vida parece muito mais simples. Começou tão inesperadamente, mas é sempre assim que acontecem as melhores histórias.

Faz 20 anos que conheci a Beatriz, e por ela conheci o Fernando. Hoje os dois tem quatro filhos. Não sei como uma família tão grande insiste em existir num mundo tão caótico, mas existe e eu definitivamente não consigo imaginar como seria se não tivesse estas pessoas por perto.

Um dia nos sentamos numa cozinha qualquer e então tudo nos pareceu tão natural, parecia que tínhamos passado toda a vida só para aquele momento. Aquelas poucas horas começaram uma tradição. No final não era mais uma cozinha qualquer.

Desde então já vimos a Beatriz passar por tantas crises quanto se é possível contar os grãos de areia do deserto, e mesmo assim ela sempre saiu de todas como uma fênix. É tão maravilhoso acompanhar estes momentos que eu poderia ser amiga dela para sempre só para a viver as vezes em que ela renasce e destrói todas as incertezas. Eu não poderia ser mais grata do que sou por ter este furacão na minha vida.

Vimos o Fernando conquistar o mundo tão rápido e silenciosamente, quase como se estivesse pedindo licença tão educadamente que fica impossível não ceder. Ele carrega em si as emoções de todos que passaram por ele, acho que sempre teve esse dom. É o membro mais caoticamente sensível que temos. Ganhou minha amizade com um livro, e eu não tive outra escolha que não fosse confiar nele.

E eu? Talvez em outro texto eu conte como cheguei até aqui. O que realmente importa agora é que cheguei e mais um livro vai sair. A essa altura já consigo viver apenas dos livros, e tenho certeza que isso é graças a uma outra crença que criei, eu tenho um anjo da guarda que me da Sorte. Meu anjo da guarda é a Beatriz, e todos os primeiros livros são dela, e ela está todas as dedicatórias, talvez não com o mesmo nome. É engraçado que dependo de coisas tão improváveis para escrever. Um anjo da guarda, uma noite com amigos e sobrinhos, uma pequena inspiração, e no final tudo se encaixa tão harmonicamente que não saberia escrever sem a existência destas variáveis.

Já comprei a passagem e na semana que vem estarei novamente com uma taça de vinho na mão, mais umas histórias de como meus sobrinhos viveram intensamente mais um ano de suas infâncias, e vou fingir de novo que me esqueci dos presentes só para ver suas carinhas de decepção se transformando em alegria quando perceberem que era tudo uma brincadeira. Talvez a refeição deste ano seja lasanha, ou cordeiro, ou qualquer prato que não sei o nome mas com certeza já consigo sentir o cheiro. No próximo ano eu conto qual foi o cardápio especialmente criado para a nossa noite.

Gabriela Lourenço
Enviado por Gabriela Lourenço em 28/07/2023
Código do texto: T7848287
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