Onirismo: memória e sono como princípio da realidade
"Se a memória não fosse prejudicada pelo sono nós não saberíamos o que é real. Vigília e sonho são faces da mesma moeda"
Por que digo isso?
Há alguns anos eu era praticante de sonhos lúcidos, e tive muitas experiências malucas com sonhos. Mas a maior delas foi quando vim morar na Bahia e meu espírito saudoso ainda estava preso às lembranças de São Paulo. Sonhei que estava junto dos antigos amigos de infância. Quando notei - e aqui eu lanço luz sobre a minha epígrafe - que eu não podia estar em São Paulo, pois eu não tinha dinheiro para pagar a passagem, ou seja, eu lembrava de fatos da realidade do dia anterior ao sono. Isso despertou em mim um certo receio prenhe de uma impressão misteriosa que só os sonhos lúcidos têm. Minha memória não fora totalmente afetada pelo sono. Mas devido ao grau de realidade do sonho eu me senti confuso, desconfiado. E para tirar minhas dúvidas tratei de observar se havia discrepâncias de realidade. E a primeira coisa que notei foi que o cenário de costume estava modificado, haviam coisas em lugares que não lhes pertenciam; depois notei que um dos amigos tinha os dentes avermelhados e as orelhas muito cumpridas. A partir daí me deixei convencer que eu estava vivenciando um sonho lúcido. Tratei de examinar aquela realidade tão real quanto esta em que escrevo: tocava nas coisas, sentia sua solidez e ficava abismado como poderia o sonho ser tão vívido, tão sólido... Como é possível? Haveriam átomos naquela realidade? O que significa a palavra "real"?
Mas, enfim, deixando de lado as questões, resolvi revelar para um dos personagens de que aquilo não era real, era um sonho meu. Tive de tomar coragem para fazê-lo, pois mesmo convencido de que estava sonhando, devido ao realismo parecia um absurdo dizer uma coisa dessas para alguém. Escolhi o amigo mais próximo, o qual sempre divagamos sobre os mistérios da vida, e disse a ele: - Naka, você sabe que isso que estamos vivendo é um sonho, né?! - Até aí ele apenas fez sinal de crer na possibilidade. Mas quando eu disse: - Eu estou sonhando - ele não acreditou e retrucou: - Você está dizendo que eu estou em sua cabeça? Você ficou maluco? Muito pelo contrário, eu estou bem aqui...
Aquelas palavras ecoaram dentro de mim e estremeci diante da possibilidade daquilo não ser possível...
- Mas e esta convicção de que eu não poderia estar aqui? Como vim parar aqui? Por que não lembro da viagem? Lembro-me de estar na Bahia, como poderia estar aqui? Qual realidade é real?
Meu espírito estava tão profundamente dividido entre a saudade e a consciência que eu não sabia o que era a verdade. Honestamente, não sei dizer o que é a verdade, pelo menos no âmbito da psique: - e não é o mundo percebido uma projeção filtrada pelo prisma da mente e dos sentidos? O mundo é subjetivo. Não existe realidade em si...
Todas aquelas dúvidas caíram como nuvens negras em minha alma. De repente, como se não houvesse tempo, imerso numa sensação de eternidade, o sonho tomou o aspecto de um pesadelo terrível; fui tomado por um horror inexplicável, o horror daquele que começa a se convencer que enlouqueceu. Minha sensação da vida se dissolveu num delírio de eternidade. O tempo não passava, não havia temporalidade, a memória das duas realidades se misturavam numa impressão de incerteza delirante. Desesperei. Os personagens do sonho não entendiam meu desespero e faziam piadas a meu respeito. É como dizem: quanto mais sabemos mais sofremos...
Disse a eles que não sabia o que estava me acontecendo, se eu estava vivo ou morto, pensamento este que os fez duvidar da minha sanidade, fortalecendo ainda mais a suspeita que eu tinha de estar enlouquecendo.
Imagine se dissessem ao leitor, com a face distorcida, que tal pessoa não sabe se está sonhando ou acordada. Que isto é um sonho que tal pessoa está sonhando. Seria um absurdo. O leitor pensaria que tal havia enlouquecido. Pois era assim que eu me sentia, em desespero e absurdo... é assim que às vezes ainda me sinto...
Saí caminhando cambaleante e fugi da vista dos meus personagens e me isolei num escuro canto de um muro e fechei os olhos, dizendo que quando os abrisse eu despertaria. Mas nada adiantava. Quando abria os olhos eu lá estava ainda. Por fim, para finalizar, me convenci de aquilo poderia ser a morte, e eu estava preso naquela eternidade; foi quando despertei atônito com a sensação de não ter dormido, assustado e, ao mesmo tempo, rindo incrédulo...
Fora tudo um sonho? ...
Diversas possibilidades existenciais nasceram depois deste sonho, a vida deixou de ser aquela coisa objetiva, "real". Agora não vejo diferença entre as imagens do sonho e as imagens da vigília, tudo é o mesmo mistério. É o absurdo...
Sonhar é Destino. O mundo é uma metáfora. A vida é sonho, amigos. Um sonho dentro de um sonho...
" Dizem que os sonhos são reais somente enquanto duram. Não poderíamos dizer isso da vida?" __Waking Life