Dias Frios

Por dentro do casaco, a pele. Por baixo dela, invisíveis camadas de tecidos e terminações nervosas. Lá dentro, escondido ou protegido, o coração. Meu caminhar é pura contradição. O movimento dos meus passos desafia meu desejo de inércia; sigo numa direção quando, por dentro, avisto descaminhos e desvios disputando minha atenção. Sou toda contraste. Meu sorriso sai fácil porque desliza sozinho e frouxo, enquanto minha lágrima exige demais para vazar os olhos.

Dia frio. Dias frios que sucessivamente prometem me bagunçar o juízo. Meu corpo pede vinho. Minha consciência me dá água. E eu penso a quem devo agradar e ver feliz.

Chove e o frio aumenta. Tomo minhas gotas de homeopatia e não vejo nada acontecer de imediato. Ouço a sirene, afinal estou na metrópole, e esse é o som que me faz sentir que tudo está bem, acomodado no seu devido lugar.

O dia é frio. E as minhas lembranças boas de infância parecem querer me aquecer a todo custo. O mingau, a sopa, a febre e o remédio. Neste lugar o frio não chega. Não alcança. Sei da invencibilidade das paredes ali, separando o dentro e o fora, acentuando sua espacialidade. São tão bem demarcadas essas linhas que quase não me é possível sair para uma nova realidade, ainda que nem me esforce para que isso aconteça. Apenas desejo não me perder no mosaico do tempo, na sua subversão: o hoje parece mais velho e mais antigo do que o ontem. Como numa demência temporária, as lembranças são as coisas mais vivas que possuo, mais presentes e sólidas, menos perecíveis que os novos dias erguidos em concreto e areia.

Frio demais. À medida que o frio aumenta, vai ficando mais quente aqui dentro. Eu me aconchego, me abrigo e me asseguro de que não há fresta pro vento. Imaginar um fio soprando meus pelos sob o tecido da roupa me arrepia e chega a doer.

É dia. Está frio. Chove. Chove fininho e doído. Estou viva. E disso nem saberia não fosse a confortável sensação de ter estocado um pouco de calor no abrigo do tempo.