Quem é ela?
Paciência com com as mulheres que nasceram e cresceram nos anos 80 e 90.
Talvez seja difícil conceber isso, ou até mesmo, para alguns, se lembrar disso, mas era rádio, tv aberta, revista e telefone. Muitas de nós, mais que você imagina, só fomos ter acesso e contato com reflexões, conhecimento e alternativas sobre nossas condições e trajetórias lá pelos 30 anos. E quando a internet começou a ficar mais popular, já estávamos na faculdade e/ou mercado de trabalho. Alguns anos antes, quando a conexão era discada, contadinha nos centavos da madrugada, a diversão era ver fotos do Titanic e do Leo DiCaprio. Depois. no início das redes, com o Orkut, a diversão era entrar nas 'comunidades' mais engraçadas pelo mero prazer da piada. Fóruns, discussões, grupos de apoio, conversas online para suporte, vídeos de pessoas que passaram pelas mesmas coisas que você, nada disso fez parte da nossa formação. Muitas de nós, mais que você imagina, vivemos relacionamentos abusivos no amor, na amizade e no trabalho, e não apenas não fazíamos ideia, mas éramos estimuladas a isso. Sei que você vai dizer que isso continua sendo uma realidade. Eu sei disso. Quantas e quantas de nós vivem em condições iguais ou piores que aquelas ainda de antes da tv, do rádio e do telefone... Sim. Estou falando com a bolha mesmo, a bolha que está aqui, pra quem paciência de ler mais que três linhas. Nessa bolha, existem mulheres vindas de tudo quanto é bolha possível, e que não sabiam que estavam em bolhas, nem sabiam que existiam bolhas. Ao se tornarem adultas e amadurecerem, foram de repente expostas a enormes quantidades e profundas intensidades de informação sobre ser mulher, sobre os desejos e as maneiras de ser mulher. Sei que você vai dizer que o corpo e o ideal feminino continuam a ser objetificados. E você tem razão. Mas nós crescemos sem representatividade alguma. As meninas pretas só se viam como empregadas nas novelas do Manoel Carlos, e era só isso que tinha pra assistir. Não tinha um único produto para seus cabelos na perfumaria além do 'alisabel', que era pra alisar. Meninas mais intelectualizadas não recebiam nenhum estímulo, fosse na área que fosse. Gordas (desde as como simplesmente não magras) só eram retratadas na Malhação como meninas tristes, que viviam à sombra do peso, mas depois superavam, emagreciam e todos viam que ela tinha 'um rosto lindo'. Os corpos eram bronzeados o tempo todo, não havia modelos étnicas nem com mais de 30. Paciência com a mulher que tem horror de envelhecer, que tem medo de perder a beleza. Nossa obrigação era conquistar os meninos, e todas as meninas eram ensinadas a competirem umas com as outras em todos os momentos, não por elas, por eles. A primeira menina que eu vi escrevendo uma carta de amor pra uma outra menina na 'semana da correspondência' do colégio não tinha mais ninguém e aguentou tudo na berlinda, e era muita, muita coisa pra aguentar. Quando eu menstruei, não sabia que existia menstruação e achei que fosse morrer porque não parava de sair sangue de mim. Paciência se mulheres dessa geração não conseguem abraçar o ideal de 'mulher natural', que dança e agradece pela menstruação. Você não sabe. Hoje sei que muitas de nós (e estou falando só do que eu sei por ter vivido ou acompanhado alguém vivendo) foram vítimas de pedófilos que nós fomos ensinadas que eram nossos príncipes encatados, e que deveríamos nos sentir honradas por alguém nos querer. As primeiras experiências sexuais eram forçadas de uma maneira que nem imaginávamos, as coisas tinham que acontecer porque era assim e ponto. Não se falava em consciência sobre o corpo, não se falava em opções. A educação sexual era ter que assistir a um filme com restos de aborto e tortura de bebês, é só perguntar pra quem estudou em escola religiosa. Você tem ideia do nível de agressão que isso gera em uma mulher? Paciência, porque nós estamos aprendendo na maturidade a dosar muita coisa, entender muita coisa sobre nós. Sim, nós que temos acesso, que lemos, discutimos, participamos, que tivemos a oportunidade de passar menos dificuldade que os pais, inclusive aquelas que puderam dar algo para as filhas. Nós vimos tudo mudar e nos cobramos pra caramba sobre nossos papeis, nossas chances, nossa consciência, nossas escolhas, ao mesmo tempo em que somos confrontadas diariamente com toda uma história que é sim nossa, que nos gera profundas contradições e sentimentos penosos. Paciência com você, paciência com a mulher ao seu lado.