Apenas atravesse

Gosto de compartilhar meus pensamentos com vocês. E compartilho tantos que às vezes me esqueço e acabo voltando em assuntos que já tratamos, embora sempre tenha algo novo a ser acrescentado, uma visão nova, um entendimento diferente. E hoje é um daqueles dias. Sinto que já conversamos sobre isso por aqui. Mas sinto, ainda, que nunca é demais reforçar a importância desse tema. Porque é isso. A vida é impermanente. E ficarmos apegados ao que está fadado a passar, causa nosso sofrimento diante da impossibilidade de travar a fluida estrada da vida.

“Vê que a vida é uma grande ponte, não constrói nela tua casa, atravessa somente” (Buda)

A vida é uma grande ponte. As pontes podem ser de madeira, já atravessei por muitas assim. Podem ainda ser de concreto e asfalto, por dois anos da minha graduação eu passei por uma. Mas a constituição das pontes não importa. Importa o seu propósito. E qual é o propósito de uma ponte? Para que ela é construída? Perguntas simples! Para unir dois pontos que estão distantes, tornando impossível que, através de um esticar de pernas ou um robusto pulo, consigamos nos transportar de um ao outro lugar. Lugares que precisam dessa conexão. Lugares nos quais temos coisas importantes a manter ou construir. De maneira que não ficamos estagnados na ponte. Não fazemos nossas construções nela. Não fincamos raízes. Nem pode ser assim. Porque o trânsito na ponte precisa fluir, continuar, para que uns consigam partir e outros possam chegar. E, assim, nós mesmos precisamos fazer a travessia.

A vida não é a nossa casa. A vida não é o nosso lugar. Estamos na vida, eu concordo. Mas não ficaremos na vida. Teremos que atravessá-la. Passar por ela. Chegar ao outro lado. De maneira que não adianta criarmos apegos às coisas dessa vida, nem mesmo é satisfatório. Sofremos por isso. Sofremos por ver que elas vão, partem, sem nem olhar para trás. Precisamos vivê-las, é claro. Enquanto estiverem conosco. Mas durante a travessia precisamos entender que essas coisas, por melhores que nos sejam naquele momento, também terão a sua ocasião de partida para que novas (e até melhores) experiências possam chegar e ser desfrutadas em sua plenitude.

Mas se fico apegado a coisas antigas, como provarei das delícias das coisas novas? Se fico preso ao drama de meu relacionamento que não foi para frente, que teve um final indesejável, por vezes dramático, como conseguirei viver relacionamentos melhores e que me agradem? Se fico paralisado no mesmo banco lamentando o jardim ser destruído, ou até substituído por construções de cimento e cal, como poderei contemplar outros jardins e ver o desabrochar de novas flores? As coisas têm o seu tempo. Convençamo-nos disso. Porque nós também temos o nosso.

Mas, sendo então uma ponte, para onde a vida está nos levando? Para o melhor que pudermos ser! Para o desenvolvimento de nossa humanidade, para a concretização de nossas potencialidades para o nosso genuíno e sublime florescer. Dentro dos nossos limites, dentro das nossas singularidades, mas nunca a partir da visão das outras pessoas. Porque prega-se que precisamos ser a nossa melhor versão todos os dias, mas dizem que essa tal melhor versão é aquela que não têm limites, que cobiça conquistar o mundo, que almeja a aparência dos padrões. Não é a isso que me refiro. A vida não está preocupada em nos tornar melhores para que sejamos ostentados na capa de uma revista. A vida se reserva a nos ajudar na travessia rumo ao encontro com o nosso verdadeiro Eu, com aquele que podemos ser e que nos deixaria realmente felizes se o fôssemos. Mas só alcançarei esse Eu autêntico se eu compreender que a vida é fluxo, não é estacionada, nem é o lugar onde eternamente ficarei. A vida está me levando de encontro à Humanidade. À minha. À sua. À Humanidade de todos nós. Resta saber se estamos dispostos a atravessar por essa ponte resistindo às tentações do apego e nos abrindo aos frescores do constante vir a ser característico de nossa impermanente existência!

(Texto de @Amilton.Jnior)