Amanhã pode ser tarde

Creio que quando ela me deu aquele último abraço, e mesmo tão sem forças, acompanhou-nos até o carro e em frente ao portão acenou até que virássemos a esquina, foi um “até breve”.

O último geladinho que chupei na vida. A última vez que corri por aquele quintal. A última vez que fiz carinho e conversei com os cachorros. A última vez que pegamos aquela estrada. A última vez que olhamos os álbuns de fotos e relembramos todas as histórias cruzadas de nossa família. A última vez que ela nos fez rir contando histórias engraçadas e seus causos. A última vez que tomamos café na mesa da cozinha. A última vez que senti o cheirinho do abraço dela. A última vez que lavei a louça para que os outros pudessem conversar. A última vez que ela separou comidinhas em potinhos para levarmos, trazendo junto alguns maços de couve e falando esperançosa sobre operar o outro joelho e ter mais chances de ser ativa quando o pior da pandemia passasse. A última vez que brinquei com meu priminho. A última vez que nos vimos. A última vez que me sentei naquele sofá. A última tarde que a minha mãe passou com a mãe dela.

Ninguém presumia que a despedida seria naquele dia, afinal de contas, ela seguiu nos telefonando até pouco tempo antes do fim, todavia, quarenta dias antes de partir, o diagnóstico caiu como uma bomba. Minha mãe decidiu orar para que Deus operasse um milagre e contrariasse as perspectivas desfavoráveis, ela disse “eu sei que eu estou morrendo, fia.”, a dor dava a palavra final, era deveras insuportável.

Ninguém queria desistir de acreditar na cura, mas o estado estava sob o decreto da bandeira vermelha, aquela onda nefasta de casos e mortes destruíam a esperança de que haveríamos de ver dias melhores; naquele jogo de dados viciados, a qualquer esquina a morte encontrava-se à espreita. Ela teve um tumor no cérebro muito, muito antes, sentimos muito, muito medo de perde-la, porém ela saiu tão bem do centro cirúrgico e não ficou com nenhuma sequela, pelo contrário, saiu mais determinada a viver do que quando entrou naquele centro cirúrgico.

Daquela vez, no entanto, nem as preces mais ardorosas teriam efeito, sem contar que algumas pessoas, entorpecidas pela raiva, passaram a agredir umas às outras com áudios desbocados, troca de insultos, lavar a roupa suja quando o momento era de união e consternação. Aquele elo que envolvia a todos desfez-se num último e doloroso suspiro.

O velório foi simbólico, muitas pessoas sequer puderam vir e aquelas que tiveram a chance de vê-la descansar preferiram tretar e sucatear a casa para apropriar-se dos aparelhos de televisão, do forno elétrico, da lavadora, do fogão, da geladeira e do restante da mobília, sem o menor respeito pelo momento e pelo significado daquela perda irreparável.

Todos brigam pelo inventário, excedem os limites do bom senso, mas ninguém jamais refletiu que a casa era um lar quando lá havia uma família, que, sem ela, não passa de um terreno a exemplo de qualquer outro.

Ninguém se importou em levar adiante alguma tradição, a importância de manter a união e agir com diplomacia para evitar rupturas, ninguém honrou o legado deixado. No coração dela havia espaço para todos, então nunca fez sentido querer monopolizar a atenção e o amor dela se amor se soma, não se subtrai.

Despedidas não seguem um roteiro todo minucioso, elas somente ocorrem. E amanhã pode ser tarde. Tarde demais para reconhecer que a vida não tem modo de espera.

25 de abril de 2023.

Marisol Luz (Mary)
Enviado por Marisol Luz (Mary) em 25/04/2023
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