Estava chovendo

Estava chovendo... Eu era capaz de ouvir os pingos no telhado. Mas não eram pingos serenos, claro que não. Porque não era uma chuva qualquer, como aquelas que só aparecem por aparecer, porque as nuvens já estão cheias demais para continuar represando as gotas que, a qualquer custo, querem saltitar pelo ar. Era uma tempestade, daquelas que nos assustam e até apavoram, daquelas que mais parecem uma guerra entre as gotas pesadas e as nuvens escurecidas, pretas, que fazem o dia se transformar em noite e parecem despencar do céu.

Estava chovendo... Eu era capaz de sentir o cheiro da chuva. Aquele cheiro de terra molhada. Do vapor da água que toca o chão quente pelo calor do verão. Aquele cheiro que nos faz lembrar de episódios passados, remotos, que, sabemos, jamais serão revividos. E, portanto, lamentamos. Aquele cheiro que nos coloca em pé na porta da cozinha vendo o chão se alagar, as águas caírem agitadas, se acumularem volumosas, fazerem-se notar enquanto ficamos perdidos em pensamentos, em devaneios, daqueles que nos levam para longe, depois nos trazem para perto e tornam a nos afastar da realidade outra vez. Aquele cheiro que nos faz pensar sobre a vida e a nos questionar qual é o sentido disso aqui.

Estava chovendo... Quando eu mesmo me questionei... O que faço aqui? Existe um motivo? Será que tem alguma razão? Algum propósito? Algum sentido? Alguns dirão que sim. Que nada é por acaso. Então por que não os conheço? Por que não os reconheço? Por que não os sinto? Por que não encontro esses sentidos e propósitos? Por que tudo parece um vazio sem fim e sem conteúdo? Por que isso aqui, essa existência, essa coisa que chamamos de vida, mais parece um túnel sem fim que nos leva a lugar nenhum?

Estava chovendo... Quando me questionei sobre as experiências que tive, as pessoas que conheci, os amores que senti, as decepções que senti, as interrupções as quais fui forçado... Às desistências as quais fui impelido. Aos medos que me paralisaram e não me permitiram viver o que realmente queria... Há sentido nisso aqui? Há sentido nesses medos e receios? Há propósito nessas desistências e impossibilidades? Qual o sentido disso aqui?

Estava chovendo... Quando eu calei esses pensamentos. Não queria mais tê-los... Não... Eu não posso pensar essas coisas... Essas coisas que me desanimam, que me apavoram, que me angustiam, que me fazem pensar se vale e pena... Eu não posso pensar...

Estava chovendo... Quando entendi que, sim, posso pensar, devo pensar, porque como alguém disse, quem não pensa é pensado... E então me convenci de que não posso procurar pelas respostas que quero fora de mim. Porque elas habitam em meu coração. Dentro do meu corpo. No mais íntimo do meu ser. Mas então entendi que talvez eu tenha medo de embarcar rumo a mim mesmo, porque descobrirei coisas que não gostaria, terei visões que me assombrariam, descobriria que nem sempre fui quem quis ser, mas me deixei levar por quem pensava saber algo a meu respeito... E isso seria doloroso...

Estava chovendo... Quando senti a dor de reconhecer que, é verdade, por vezes a falta de sentido que experimentamos é pelo fato de estarmos tão distantes de nós mesmos, alheios à nossa própria vida, separados de nosso próprio eu, tão ludibriados por discursos sedutores que nos prometem uma vida mais segura desde que sigamos seus conselhos... Mas essa vida segura tem um preço: uma vida desconfortável... Desconfortável porque eu não sou quem quero ser, não vivo o que quero viver, não amo a quem quero amar... Desconfortável porque nega a mim o direito de existir.

Estava chovendo... Quando entendi que o sentido que procuro sou eu quem devo fazer. O propósito que persigo sou eu quem devo construir. A vida que quero viver sou eu quem devo realizar.

Estava chovendo... Quando compreendi que aquelas perguntas nada mais eram do que o meu medo falando mais alto. O medo de assumir a responsabilidade pela minha própria história. O medo de saber que, ao rejeitar as ofertas do mundo para a tal vida segura, estarei comprando uma briga que não sei se consigo enfrentar.

Estava chovendo... Quando fui esclarecido sobre o fato de que, lutando ou não, serei vencido pela vida. Ela vai passar. E vai me deixar... Entendi então que, sem lutar, apenas a vida passará, mas se estiver lutando, então passarei pela vida... E essa passagem poderá me causar ferimentos, porque a vida às vezes é bruta e não nos pergunta se estamos confortáveis. Porque a vida é o que é. Mas, apesar dos pesares, apesar dos ferimentos, também poderei experimentar das sutilezas dessa passagem da vida que me encaminhará por jardins e bosques nos quais poderei conhecer o amor, a amizade, a coragem, a liberdade, a verdade...

Estava chovendo... Quando me reconheci enquanto um humano como qualquer outro humano que se questiona sobre a vida. Talvez a diferença seja que eu assumi que as respostas habitam em mim. E ficar procurando fora, apenas me fará ser enganado por tantos outros que também não têm respostas, mas, querendo refúgio para a própria amargura de não terem aquilo que procuram, fingem as possuírem ao ponto de poderem compartilhar... Porque é isso. Quem quer dirigir a vida dos outros não dirige nem a própria, então busca no controle alheio a necessidade que lhe incomoda.

E ainda está chovendo...

(Texto de @Amilton.Jnior)