Singular

Mudanças abruptas tiram-na do eixo. Não se trata de justificar chiliques. A dor que a assola é pungente e a sensação aparente é a de que o mundo ruiu e os pés mal conseguem tocar o chão. Falta o ar, o choro não cessa, a raiva faz-se notar por meio de intensas crises. Ela precisa de um tempo para acalmar-se, digerir o que aconteceu; se for difícil de entender, apenas respeite-a.

Ela pode ter um jeito de caminhar muito peculiar e ter pavor de falar e alimentar-se em público, sentir-se desconfortável e sobrecarregada em locais com aglomerações, som alto, gritarias e barulhos; se for difícil de entender, poupe-se de comentários depreciativos, todos saem ganhando nesta história.

Ela tem certa dificuldade em olhar nos olhos, não por falsidade nem por ser mentirosa compulsiva, não é tão simples quanto parece, nem vontade de fazer tipo; se for difícil de entender, uma dose de empatia não vai tirar pedaço.

Ela gosta de conversar determinados assuntos que podem ser considerados "chatos" para a maioria das pessoas, porém, se possível, repare no brilho no olhar enquanto ela fala sobre seus aprendizados, não porque almeje gabar-se, e sim porque está confiando em você; se for difícil de entender, insisto até o fim, se fosse você.

Ela é injustamente chamada de estranha e esquisita, no entanto, ela só tem um jeitinho diferente de enxergar o mundo, de reagir aos fatos, de maneira alguma pretender colocar-se como vítima de situações quaisquer, ser respeitada por ser quem é ajuda bastante nesse processo.

Ela não faz cálculos estratosféricos de cabeça, tampouco possui dificuldades ou atrasos na fala ou na aprendizagem, assim como pode não se sentir confortável com etiquetas pinicando na pele e as texturas de determinados alimentos não é "chatice para comer", não é culpa dela.

Ela não é menos capaz que você ou quem quer que seja, tampouco deve ser tratada como se não passasse de uma inválida que nada pode contribuir ao mundo, aliás, só porque ela vive no próprio mundo não quer dizer que não sinta, não ame, não se importe.

Ela talvez seja de fato ingênua demais para a idade, para este mundo, talvez não seja nada hábil em disfarçar, pois, para sobreviver ao mundo, ela aprendeu a utilizar máscaras sociais, a moldar o comportamento dela de acordo com o que parece correto de se fazer e, acredite, não é uma tarefa das mais fáceis porque mesmo empenhando-se tanto, sempre se sente uma pária por onde quer que vá, uma peça sem encaixe, amargando uma solidão diferente daquela que buscamos quando precisamos colocar os pensamentos em ordem, é aquele tipo de solidão involuntária, que fere sobremaneira, tanto quanto os insultos do ensino fundamental.

Custa tanto assim atinar que pessoas são diferentes? Que, independentemente do que vivam, merecem respeito?

Se for difícil de entender o que é viver no mundo dela, não o perturbe porque o mundo não necessita de mais maldade, mais calúnias, mais cancelamentos, mais intolerância, mais julgamentos, o mundo precisa relembrar que a bondade ainda existe, que bons exemplos inspiram, que o diálogo, o respeito e o perdão constroem pontes em vez de prisões e que nunca é tarde para se transformar em uma pessoa melhor.

Se o ódio não embaçasse as vistas de todos nós, com certeza viveríamos em paz, mesmo com todas as nossas discordâncias, diferenças, preferências e peculiaridades. O ódio é o pai do preconceito, o grande mal da humanidade. O amor é o primeiro passo para uma transformação mais profunda, todavia, o medo de dar o primeiro passo rumo ao desconhecido impede que muitas pessoas entreguem-se.

Ela se fere deveras quando ouve ou lê alguém por aí bradando que "ser autista agora é modinha". Não, não é uma modinha. Trata-se de uma condição que mesmo não sendo uma doença, necessita de acompanhamento e determinados cuidados, o acolhimento de profissionais capacitados, conscientização da sociedade, logo, quanto mais o assunto está em voga e muitos adultos são diagnosticados, mais paradigmas quebram-se e, dessa forma, temos a possibilidade de aprender com cada pessoa.

Ela passou a maior parte da vida dela sem entender direito o porquê daquele aperto no peito, mas hoje ela sabe e foi esse saber o responsável pelo processo de metamorfose. Ela não era louca nem esquisita, ela nasceu autista.

Marisol Luz (Mary)
Enviado por Marisol Luz (Mary) em 13/04/2023
Código do texto: T7762934
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