O Teatro de Partículas
Imagine um baralho. Comum, completo, como qualquer um que você já tenha visto. Abra-o em um leque e observe a sequência.
O que você vê? Um baralho ou cinquenta e duas cartas?
Independente da sua resposta, o que você vê na verdade é um amontoado de papel e tinta.
Entretanto não passa de uma ficção mental, uma interpretação vazia de um sem-fim de moléculas químicas combinadas por mãos humanas, que por sua vez não passam de combinações atômicas. Estes últimos são apenas um número x de prótons e seus parceiros elétrons, dando uma festa para os convidados nêutrons. Cada qual formado por uma combinação de quarks, e assim sucessivamente até chegarmos aos férmions com seu spin único, formando toda a matéria que conhecemos, e aos bósons, partículas multigêmeas eternas de vazio e nada.
A pergunta que fica é: quando? Em que momento esse infinito número de férmions, cada qual único e independente, se tornou um baralho? Ou uma cadeira? Ou uma nuvem? Quando esses férmions se tornaram você?
Pois mudemos de perspectiva. Quando Sarah Bernhardt sobe ao palco como Medeia, ela ainda é a mesma Sarah Bernhardt ou ela se torna Medeia?
Uma atriz no palco sempre será uma atriz. Mas quando tal atriz assume um papel, ela também se torna sua personagem, sem apagar de si mesma a identidade de atriz.
No macrocosmo da questionável realidade em que vivemos, ela é Sarah Bernhardt, mas no microcosmo do palco ela é Medeia. Se ao observador interessa o universo fictício de Shakespeare, ele perceberá Medeia. Se a ele interessa a construção logica da obra de arte, a verá como Bernhadt. Ambas as visões estão corretas, apenas abordando a situação de perspectivas diferentes.
Quando os férmions se tornam você, então? Quando sobem ao palco, e cumprem seu papel. Quando cada qual, preservando sua individualidade, se torna uma engrenagem numa maquina complexa, trabalhando pelo bem comum sem nunca deixar de ser um férmion.
Então o que é a realidade senão um palco gigantesco? Uma grande peça onde atores microscópicos e gigantescos colaboram sem um diretor ou um contra-regra. Sem texto, sem marcação, sem coxia e sem intervalos. Um palco onde humanos deixam de ser humanos para se tornarem médicos, professores, policiais, criminosos, heróis ou vilões. Um palco onde uma arvore se torna uma cadeira, um esqueleto decomposto se torna um brinquedo plástico, onde um sentimento abstrato se torna dinheiro.
Entramos tanto no personagem que esquecemos que somos atores. Esquecemos que somos humanos. Um férmion não pode jamais se esquecer de que é um férmion, ou seu spin não mais seria único, e ele se tornaria um bóson, voltaria ao nada. Então por que nos damos ao luxo de esquecer-nos que somos humanos, nos tornando nada além de nada?
Quando esqueceres que és um ator, olha pra cima. Vê as luzes dos focos, a cortina pendurada, lembra-te dos ensaios, da construção do seu personagem. Lembra-te de ti mesmo. E seja a estrela. Pois no palco do universo, não há protagonistas. Todos são igualmente presentes, sem competição ou destruição. Há somente arte e sentimento. Uma dança leve e coreografada, a música sutil das estrelas, uma cortina que nunca se fecha e um enredo que começa pelo meio e nunca chega ao fim. Esses são os elementos que compõem o palco da realidade.
Este é o elenco desse teatro de partículas.