França, Mon Amour

Desejo expressar, ainda que de maneira desordenada, contudo, categórica, a superioridade da França diante das demais nações.

NO CINEMA

Recordo-me nitidamente. Era a reinauguração do Cine Belas Artes, lendário cinema situado no começo da avenida Paulista, na Consolação. O cheiro de plástico que as cadeiras novas exalavam se misturava com o aroma dos croissants recém-assados, conferindo ao ambiente um perfume inigualável. No cinema, passava "Medos Privados em Lugares Públicos", de Alain Resnais. Jamais uma sessão de cinema provocou tamanha impressão na minha alma como nesse dia.

Resnais é um dos cineastas da Nouvelle Vague, movimento fundado pelos jovens diretores franceses no final da década de 50, saídos da revista Cahiers du Cinema, onde eram críticos.

Truffaut e Godard são os maiores expoentes do movimento, que contava, além deles, com figuras como Claude Chabrol, Agnes Varda, Eric Rohmer, além do próprio Resnais.

Esses jovens cineastas apregoavam um cinema com maior liberdade, tanto nos aspectos técnicos - como cenários ao ar livre, falta de linearidade no roteiro, longos planos sequências - quanto nos temas, abordando assuntos delicados, como adultério, sexualidade, política.

Tendo como mentor seu chefe na Cahiers du Cinema, Andre Bazin, produziram alguns dos filmes franceses mais icônicos de todos os tempos, como "O demônio da Onze Horas", "Jules e Jim", "Hiroshima, meu amor"...

Combinando influências que iam desde o Neorrealismo Italiano de Rosselini (Roma, Cidade Aberta), Vittorio de Sica (Ladrões de Bicicleta) ao classicismo hollywoodiano de Hitchcock (Rebecca, a Mulher Inesquecível) e cineastas franceses históricos anteriores à criação da Nouvelle Vague, como Renoir (A Regra do Jogo) e Cocteau (A Bela e a Fera). Acrescentavam ainda os preceitos fundados por Dziga Vertov em "O Homem com a Câmera" e "Encouraçado Potemkin", de Eisenstein.

Além dessa contribuição histórica ao cinema francês, tiveram grande participação durante os protestos de maio de 68, juntando-se ao diretor da Cinemateca Francesa (a qual a fachada da Reserva Cultural, na avenida Paulista, foi inspirada), Henri Langlois.

Truffaut e Godard, até hoje, suscitam a discussão de quem é melhor. Para mim, são cineastas distintos. Devido a diferenças ideológicas, romperam a amizade que tinham desde a época da Cahiers. Godard acreditava que o cinema deveria ser um veículo político. Truffaut, pelo contrário, dizia que a arte não deveria prestar-se a esse papel, que a missão do artista é mostrar o belo.

Jamais essa dicotomia esteve tão evidente quanto no episódio em que Jean Pierre Leaud, principal rosto da Nouvelle Vague, estreou "Noite Americana" de Truffaut. Godard mandou ao diretor e ao ator uma carta denunciando a farsa que era o cinema dos dois. Esse episódio marcaria a ruptura de ambos, jamais restabelecida, até a morte de Truffaut.

No meu espírito, eles me marcaram de maneiras diferentes. Ambos têm a característica de escreverem muito bem. Mas Godard escreve com a câmera, tem imagens mais poéticas. Truffaut, por sua vez, aborda temas que me dizem mais respeito. Seu cinema é mais leve, mais digestível e alegre, em suma, é mais clássico. Ora prefiro um, ora outro. Quem é melhor é um assunto que não me diz respeito. O que fazer?

CINEMA CONTEMPORÂNEO

Além desses nomes clássicos, no cinema moderno francês, surgiram nomes como Jean Jacques Jeunet, e seu estilisticamente belo "Amelie Poulain". A antítese do "Amelie Poulain", talvez seja "Sozinho Contra Todos", do franco-argentino Gaspar Noé. Noé é dono de um cinema controverso, com filmes como "Love" e o filosoficamente indigesto "Irreversível". Outro nome de cineasta francês contestador é François Ozon, com seus "Jovem e Bela", filme muito inspirado em "A Bela da Tarde", de Luis Buñuel, e o "Amante Duplo". Também há filmes que não são propriamente franceses, mas, talvez, inspirados pelo clima dessa grande nação, têm co-produção da França, como "Os Sonhadores", de Bernardo Bertolucci, e "Amour", de Michael Haneke.

Porém, nada surgiria sem os pais do cinema, os irmãos Lumière. Dizem que os telespectadores que acompanharam a primeira sessão de cinema, que mostrava um trem chegando na estação, saíram correndo quando o trem se aproximava.

ATORES E ATRIZES

Nesse quesito, a França também é inigualável. Nomes como o fantástico Gerard Depardieu, o rosto da Nouvelle Vague, Jean Pierre Leaud, Louis Garrel, com seu estilo blasé despojado. E ainda outros, como Jean Reno, Vincent Cassel. E as atrizes? A beldade Brigitte Bardot, a bela suíça radicada na França, a musa inspiradora de Godard, Anna Karina, a exótica beleza de Audrey Tautou...

FILOSOFIA

Na filosofia, talvez seja o debate onde a superioridade da França seja mais evidente. Não à toa, é o local onde surgiram a escola do Iluminismo e o existencialismo. Nomes como Descartes, e seu conceito de cogito - penso, logo existo -, que, segundo ele, é a única verdade humana irrepreensível. Estabelecia a importância do "eu" e do pensamento. Todas essas percepções da vida proviriam dessa máxima. Há também o Rousseau e seu humanismo, nos legando obras como "A origem da desigualdade entre os homens", cuja premissa era a de que o homem é um animal que difere dos demais por ser capaz do que chama de "perfectibilidade", ou seja, a capacidade de se aperfeiçoar e usar seu livre arbítrio para tal. Os outros animais, contudo, não possuem essa capacidade, apenas agem como se possuíssem uma espécie de "software" que delimitaria o seu agir. Além dessas obras, Rousseau pensou em "O Contrato Social", na qual defendia que o homem, vivendo no estado de natureza, estaria sujeito a ter sua integridade e propriedade violadas por outro indivíduo mais forte; portanto, "o contrato social" existe para protegê-lo do estado da natureza, regulando a sociedade entre os homens.

Mais tarde, surgiria o Existencialismo de Sartre, Camus e Beauvoir, cuja premissa era a lógica sartriana, muito inspirada no cogito de Descartes, que afirmava que a "existência precede a essência", ou seja, que o ser humano primeiro existe e, com as experiências que adquire ao longo de sua existência, vai formando sua essência. Além disso, Sartre e Camus eram literatos. Através de uma bela prosa, nos legaram o conceito do absurdo da existência. Sartre, em seu livro "A náusea", denunciaria uma impressão de que as coisas não têm um fim pelo qual se fundamentariam, que todas as coisas flutuam no ar, que os objetos, dessa forma, têm como que uma existência própria, e que essa percepção resultaria numa sensação de Náusea. Camus, seguindo a mesma linha de raciocínio de Sartre, afirma o absurdo da vida em seu livro "O Mito de Sísifo". Comparando nossa vida com o mesmo absurdo desse mito, no qual Sísifo é condenado a rolar perpetuamente a mesma pedra pesada que sempre retorna, num looping infinito. Para ele, como vivemos dessa forma, a única questão filosoficamente relevante é a do Suicídio; sendo a vida dessa forma, por que o ser humano não deve findá-la? Em "O Estrangeiro", Camus explora o absurdo da existência, num enredo em que um argelino acaba matando outra pessoa simplesmente por causa do sol.

Anteriores a eles, há o humanista Montaigne, a quem os filósofos do existencialismo foram muito influenciados, com sua profunda frase: "quem ensinasse os homens a morrer, os ensinaria a viver". E seus "ensaios", um livro que faz confissões, à maneira de Santo Agostinho.

Passando para a contemporaneidade, a França se destaca por seus filósofos pós-modernos. O maior nome talvez seja o de Michel Foucault, filósofo que era muito influenciado por Nietzsche - sem o qual talvez o pós-modernismo jamais existiria. Em "Vigiar e Punir", Foucault faz uma crítica às instituições de correção do homem, como clínicas de reabilitação, presídios e psiquiatrias. Em "As Palavras e as Coisas", ele faz uma arqueologia do saber, identificando o "eu" em seus determinados momentos históricos, evidenciando como o conceito de "eu" é frágil, mudando conforme a época em que está inserido.

Seu contemporâneo, Derrida, também realizou uma desconstrução do "eu". Herbert Marcuse, da Escola de Frankfurt, e Gilles Lipovetsky questionariam as formas de consumo e a cultura capitalista e como esta influencia o ser humano, moldando-o à sua forma. Em "Eros e Civilização", Herbert Marcuse demonstra como o ser humano se vale de sua energia vital (eros) para perseguir os objetivos impostos pela civilização e pela sociedade de uma forma geral. Já Lipovetsky, em "A Estetização do Mundo", faz uma genealogia da beleza e sua transformação ao longo do tempo, e como atualmente somos influenciados por ela. Ele também é o criador do conceito de hipermodernidade.

Na sociologia, talvez o grande nome seja Pierre Bourdieu, que se vale de conceitos como "campo social", "habitus", "capital social, simbólico e cultura", etc., para explicar a sociedade.

No âmbito da psiquiatria e psicanálise, ninguém foi mais fecundo do que os revolucionários Gilles Deleuze e Félix Guattari, estabelecendo os critérios para uma nova forma de análise, a esquizoanálise. Através do livro "O Anti-Édipo", eles demonstram como a teoria freudiana de Édipo é frágil. Para eles, a análise psicológica é inseparável da produção de máquinas desejantes. Eles criticam o modelo de Freud de que o inconsciente é um teatro e uma representação, juntamente com seu conceito de Édipo, que se enquadra muito com a cultura greco-romana clássica da formação educacional de Freud. Eles não abrem mão dessa ideia, sempre enquadrando o desejo nesse critério. Para Deleuze e Guattari, a produção de desejo é mais uma usina, uma fábrica, do que um teatro.

Mais recentemente, também temos o professor Luc Ferry, que foi ministro do governo Chirac e ajudou a popularizar a filosofia em uma linguagem mais acessível e palatável.

Apesar desses grandes nomes da filosofia/sociologia, talvez ninguém tenha um impacto tão grande na nossa maneira atual de viver como Montesquieu, criador da teoria da separação dos poderes em seu "Espírito das Leis", onde estabelece os limites do poder executivo, legislativo e judiciário.

MEDICINA

O pai da medicina moderna é francês (será que a pessoa que tanto amo irá me corrigir?), Claude Bernard, um fisiologista que descobriu que o rim produzia glicose. Seu método consistia em separar cada órgão do ser humano até fazer suas descobertas.

LITERATURA

Acredito que os maiores escritores de todos os tempos sejam franceses. É o país cuja literatura mais me identifico (apesar de gostar muito dos russos). Grandes monumentos da literatura são franceses: "A Comédia Humana", de Balzac; "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust; "O Vermelho e o Negro", de Stendhal; "Madame Bovary", de Flaubert. "A Espuma dos Dias", um dos meus livros prediletos, de Boris Vian, também é francês. E Victor Hugo com sua magnus opus, "Os Miseráveis" e "O Corcunda de Notre Dame". E Saint-Exupéry, e o reflexivamente fofo "O Pequeno Príncipe". Entre os poetas, Charles Baudelaire e suas "Flores do Mal", Paul Valéry e "Liberté", André Breton. Também temos os dramaturgos e peças francesas: Ionesco e seu teatro do absurdo com "Rinoceronte", Molière, Racine, Jean Genet...

PINTURA

Pablo Picasso (que era naturalizado francês) com o cubismo, o impressionismo de Monet e Renoir, amantes das mulheres, pintando a sensualidade feminina e imortalizando-as.

INSANOS

Uma sociedade rica em ideias como a francesa faz emergir indivíduos que escapam de quaisquer categorizações normais da sociedade, energias disjuntivas, como diz Deleuze. Nomes como Robespierre e Marquês de Sade, que foi preso na Bastilha, e Antoine Artaud, dramaturgo francês.

O encontro polifônico de tantas ideias fez surgir a Revolução Francesa, à qual a humanidade talvez tenha uma dívida eterna de gratidão (apesar do sangue derramado). Contudo, essa revolução dinamitou a aristocracia, libertando a sociedade do seu jugo e fazendo emergir uma nova burguesia.

MÚSICA

Paris é a capital da boa música eletrônica, pelo menos aos meus ouvidos. Não aquelas batidas inofensivas de David Guetta, mas sim os harmoniosos sons dionisíacos de artistas produzidos pela Ed. Bang Records, como "Justice", "Busy P", "Sebastian" e, claro, o inigualável "Daft Punk".

Na música clássica, há Debussy e sua linda "Clair de Lune". E, apesar de não ser francês, Chopin era radicado na França.

MODA

Grandes estilistas são provenientes da França: Dior, Chanel, Yves Saint Laurent e suas grifes. Também temos a banalizada Lacoste.

GASTRONOMIA

Grandes pratos são franceses. O guia Michelin e suas estrelas são franceses. Alexandre Dumas, escritor de "O Conde de Monte Cristo" e "Os Três Mosqueteiros", era cozinheiro e escreveu um livro de receitas.

REVISTAS E PREMIAÇÕES

Na França, encontram-se grandes redações de revistas e premiações a elas vinculadas, como a "France Football", criadora da Bola de Ouro, a principal premiação do futebol mundial, que elege o melhor jogador do mundo. Também temos a Elle, revista de moda feminina, a Cahiers du Cinéma, de cinema, e a principal premiação do cinema francês, a Palma de Ouro. O Guia Michelin de gastronomia também é francês, entre outros.

FUTEBOL

A França é bicampeã mundial. Ao longo dos anos, produziu grandes craques como Kopa, Fontaine, Platini, Zidane, Thierry Henry, Mbappé. Quanto a treinadores, depois de muita reflexão, cheguei à conclusão de que não há grandes treinadores franceses. O maior, sem dúvidas, é Arsène Wenger, histórico treinador do Arsenal, que foi responsável por vencer o campeonato inglês de maneira invicta. Menções honrosas devem ser feitas a Didier Deschamps, bicampeão mundial pela França como jogador e treinador, e Zinedine Zidane, campeão mundial como jogador e tricampeão da Liga dos Campeões como treinador do Real Madrid.

OUTROS ESPORTISTAS

Alain Prost, piloto quatro vezes campeão da Fórmula 1, Teddy Riner, maior judoca de todos os tempos, Tony Parker, quatro vezes campeão da NBA.

INDÚSTRIA

A França é o país de origem da Renault e da Peugeot.

MONUMENTOS HISTÓRICOS E TURISMO

Paris, a capital dos amantes, com sua belíssima Torre Eiffel; o Palácio de Versalhes; o Arco do Triunfo; o Museu do Louvre (tenho para mim que conseguiria ultrapassar o tempo em que Jules e Jim e Gilbert atravessam o museu)...

EVENTOS

Os glamorosos Tour de France e Roland Garros.

IDIOMA

Para mim, é o idioma mais belo, mais elegante. Por pouco não o aprendi. Cheguei a me matricular na Aliança Francesa, mas infelizmente minha vida tomou outros rumos.

Bom, é isso! Creio ter demonstrado, categoricamente, a superioridade da França. Certamente, devo ter esquecido algo ou alguém. Com isso, sem mais questões, meritíssimo!

Dave Le Dave II
Enviado por Dave Le Dave II em 24/03/2023
Reeditado em 03/07/2023
Código do texto: T7748044
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