Mar absoluto

O reconhecimento da importância do ambiente, da flora e fauna era escasso nos idos anos 70. Para quem gostava tanto de bicho, planta, era difícil ver que grande parte da sociedade considerava o homem a espécie superior, cujos interesses deviam vir em primeiro lugar. As categorias “úteis”, ou, “inúteis (nocivos)”, devem ter sido usadas pelos homens primitivos nômades, e aí sim, havia sentido. Esse tipo de visão é antropocêntrica, e as-os biólogas-os, tentam ensinar que nós somos apenas mais uma espécie, ultra dependente das demais, de todas as demais, e o fazemos, como chance de alertar quem não respeita os seres vivos. Estes, os extinguem diretamente ou indiretamente, quando elegem governantes avessos à Ciência, às Ciências da vida.

Quem era “Bio” e amava bicho, planta e mato, planejava um dia conhecer a maior porção de biomas possível. Na época da faculdade (1975-1980) fiz poucas excursões em ambientes naturais. Como professora, acompanhei alunos numa excursão de alto nível de dificuldade (para mim), nas cavernas do PETAR (Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira, localizado no sul do estado de São Paulo, entre os municípios de Apiaí e Iporanga). Contudo, Fernando de Noronha e Galápagos eram nos anos 70 sonho de muitos estudantes, e eram os meus também.

Muitíssimo tempo depois, já no século XXI, visitei o arquipélago de Fernando de Noronha, pertencente à Pernambuco. São 21 ilhas, ilhotas e rochedos de origem vulcânica, administrados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), patrimônio mundial da Unesco. Nessa época haviam cartazes e folhetos da Econoronha, uma empresa, para implantação de serviços de apoio ao turismo. Deviam estar iniciando os trabalhos e haviam construído um trecho de passarela com madeira ecológica.

Não confirmei que seria uma viagem dispendiosa conforme me alardearam vários quando expressei meu desejo de ir. Fui só, com uma malinha muito pequena e uma mochila e foi suficiente. Elegi objetivos bem claros em relação aos passeios, valores e mais ou menos uma agenda diária.

Simplifiquei o possível:

*localização da pousada: escolhi fora do núcleo urbano uma pousada vizinha do Auditório do Projeto Tamar, e que me facilitou frequentar as palestras oferecidas à noitinha. Estive em todas;

*passeios possíveis e com foco em observações da fauna local: nada ostensivos em grana, ao contrário, barco simples para ir ver os golfinhos roteadores; guia para praias de acesso restrito e controlado;

*Restaurantes populares sempte cheios no almoço somente lá no centro da Ilha; perto da pousada, eram mais caros; à noite, o meu jantar era na excelente tapiocaria vizinha da pousada.

*cultivar a confiança de que tudo daria certo, sendo simpática com as pessoas que vinham conversar e invariavelmente perguntar por que eu estava só, condição que atraia muitas pessoas.

Sueste

O primeiro passeio foi na baia de Sueste. Partimos num grupo bem grande, em vários tranfers e jeeps. Chegando na praia, a multidão de gentes de todas as idades saindo dos veículos e correndo em direção ao mar, parando para vestir os pés de pato e máscara snorkel e sumindo rapidamente mar adentro em mergulhos. Eu em silêncio lhes desejei bom mergulho, e comecei a caminhar na areia molhada. O guia me alcançou para saber por que não estava participando, expliquei que não sabia nadar, e ele me apontou alguns rapazes nativos da ilha, mergulhadores experientes. Agradeci, avaliei que não, mas, dei meia volta e corri falar com eles. Achei possível, aluguei um snorkel na loja ao lado e fomos. Após breve treino com o snorkel, José, o rapaz nativo mergulhador, me informou que eu seguraria na boia com uma só mão. A boia pequenina, de plástico duro, vermelha era tudo o que tinha de apoio. José instruiu-me que quando aparecesse algo, ele movimentaria a boia ou nos traria à tona para mostrar-me.

Sendo transportada na coluna de água transparente, sem a visão de fundo ou de céu, a quietude do barulho das ondas que criávamos, a sensação de calmaria, me fizeram desejar que o relaxamento perdurasse infinitamente. Quando li o que a Ciência nos conta do mar *, tive a certeza que o que senti não era particular. Sons do oceano ativam áreas do cérebro associadas à emoção e autorreflexão. Esses sons diminuem os níveis de cortisol, o hormônio do estresse e da tensão, fortalecem o sistema imunológico, melhoram a respiração e a circulação, aumentam a energia. Pudéssemos todas(os) irmos pelo menos uma vez por ano andar na areia da praia, refazer as noções de amplidão, profundidade, salinidade, marés, beleza e outras tantas!

Avançando baia adentro, começamos a ver um desfile de fantásticos animais. Dada a condição de transparência perfeita das águas de Noronha, e recrutando toda a minha curiosidade e conhecimento, pude identificar os bichos tão logo apareciam e junto com o José. O primeiro foi uma lindíssima lagosta vermelha enorme.

Mais um tanto mar, José puxou a boia para cima, cabeça fora da água, olho do lado, e a 20 cm uma tartaruga verde, respirando. Acho que durou um minuto, ficamos nos olhando e eu chorando de encantamento. Emoção indizível. Várias vezes eu estive pertinho delas e se fechar meus olhos as vejo com aqueles olhinhos redondos e inocentes. José me disse: “Não a toque!”. Respondi :- De jeito algum! Que bom que você nos educa José!”. O nome científico da tartaruga verde ou aruanã é Chelmia mydas. Segundo estudo do projeto Tamar**, o Brasil abriga a segunda maior área de desova dela! Ela pode chegar a 143 cm e 230 kg. É considerada quase ameaçada (de extinção). O período reprodutivo não é anual, pode ser tri anual, e quando ocorre a desova visitantes podem sob certas regras acompanhar a chegada em segurança das tartaruguinhas ao mar. A base Fernando de Noronha é importantíssima para pesquisa e conservação, porque, a transparência inigualável do mar facilita observações de comportamento quando submersas.

Naquela jornada no Planeta água, todos os tipos de peixes coloridos eu vi. Uma arraia apressada passou por nós.

José perguntou-me: “- quer ir ver um tubarão?”. Respondi: “-Onde ele está? Você acha que devemos ir?”. José informou que ele estava vários metros abaixo, e, temia que eu não conseguisse respirar adequadamente em tal profundidade”. Eu disse: -Ele já nos percebeu? A resposta foi sim, com certeza. Disse ao rapaz que eu aceitava a orientação dele e que estava muito satisfeita com tudo o que vimos. No Tamar tinha um livro de registros e eu sugeri que os turistas mais conscientes gostariam demais destes mergulhadores locais, e, portanto, deveriam inseri-los no programa de mergulhos. Sugeri para todos com quem conversei durante a viagem. Duas irmãs aceitaram esta indicação, uma delas infelizmente não gostou, e certamente se deveu a uma súbita alteração da visibilidade em Suepe no dia em que marcaram a atividade.

Baia de Sancho

Mirante

“-Hoje será Sancho!-“ouvi alguém da pousada exclamar. Sancho é uma das praias mais lindas e preservadas do Brasil. Seguimos numa passarela que conduziu a um mirante, e a visão foi de perder o fôlego. Éramos um grupo pequeno, com gentes de diversos idiomas. Lembro-me que as pessoas gritaram na primeira visão do mar de um perfeito azul, abrigando naquele instante, um homem, uma mulher, um tubarão, uma arraia gigante, todos nadando bem próximos. Minhas fantasias ecológicas da interação das espécies e destas com o meio ambiente, estavam ali concretizadas em fatos. Não, não posso pensar que foi uma cena organizada para nos receber! A visão desses indivíduos me comoveu e Sancho virou uma paixão.

Praia

A praia é uma pequena enseada e o acesso se dá descendo uma escada de metal cravada num rochedo estreito, ou, se vai de barco pelo mar. Descemos e chegamos nela e nos adequamos para o banho. Um casal de jovens acercou-se de mim e a garota me segurou generosamente a mão. O guia descreveu o ritmo das ondas, e sorrindo nos informou que exatamente na 4ª onda (algo assim), todas as mulheres ficariam sem a parte de cima dos biquínis. Conto essa particularidade, porque ninguém acreditou, e, não é que veio a quarta onda muito grande, e a previsão se cumpriu? E o guia de fora da água, de costas para nós, dizia: “Acreditem quando eu lhes disser algo. Guia não mente!” Fui ajudada por minha nova amiga. A sensação mesmo foi saber que ali, um pouco mais à frente, quatro indivíduos de três espécies, sendo um casal de minha espécie, compartilharam momentos de suas vidas e nos deixaram maravilhadas(os).

Baia dos Golfinhos

Os golfinhos de Noronha são da espécie Stenella longirostris, os rotadores, assim conhecidos porque saltam fora d’água e realizam até 7 rotações em torno do próprio eixo. Podem chegar a 5 m e nadam a velocidades de 40 km/h. Lindo passeio, criaturas impressionantes. Também fui ao Museu do Tubarão, pequeno e aconchegante e bem organizado.

Almoço na Pousada com novas amigas

Essa história do interesse das pessoas todas acompanhadas em vir perguntar me se estava só e por que, me fez conhecer duas irmãs paulistanas, com quem conversei bastante, soube da vida delas, das viagens incríveis que a mais nova fez, e quando a outra irmã se afastou, ouvi que ela havia perdido um filho. A viagem à Noronha era para tirá-la um pouco de casa. Ao saber expressei melhor meu carinho por ela, e ela a meia voz me contou tudo o que eu acabara de ouvir da irmã. Uma mãe interrompida não tem e não terá alívio. Elas me convidaram para almoçarmos juntas, numa pousada muito além do que eu poderia e me permitiria pisar. Mas elas me elucidaram que pediríamos dois pratos para nós três.

Ir ter na pousada com as novas amigas para almoçar, foi uma experiência a mais. Essa pousada é referência em hospitalidade e exclusividade. Os aposentos são bangalôs, na frente redes de algodão. Os vários e lindos espaços de almoço e jantar são abertos para o mar que os rodeiam e onde se localiza simplesmente o Morro do Pico. Ao redor dos espaços, e sobre os cercados, floreiras suspensas, com aquela fila de alfaces de muitos tipos e cores, e que a garçonete estimulava a nossa escolha, cortando os pés na quantidade que cada uma queria e levava para higienização. Ter à mesa saladas de folhas nos litorais não é comum. Interessei-me por conhecer o processo de produção: hidroponia para alfaces e tomates. Levaram-me no local de cultivo. No segundo dia o gerente gentilmente esteve em nossa mesa e após nos mostrar a pousada toda, me presenteou com um prato com ilustrações em comemoração do 11ª Festival de Gastronomia Criativa proporcionado pela Pousada. Quando sai de lá, embora agradecida pela acolhida do pessoal da pousada e das amigas, e fascinada pela natureza no entorno, vegetação bem cuidada, pratos deliciosos, senti-me bem ao voltar para a minha pousada. Era uma casa, com uma árvore frondosa e com frutos vermelhos em frente ao meu quarto. Um pomar lá no fundo perto de uma pequena e limpíssima piscina. Me senti confortável e segura. O que mais?

Fiz outros dois passeios, sempre com fauna deslumbrante para se ver.

Conversei com moradores da Ilha. A situação é a de sempre no turismo: os nativos com os serviços de menor remuneração, certamente explorados. Casas pouco adequadas, e tudo o mais. Deixei produtos de higiene para eles. Fui ao Tamar para uma última palestra antes de partir. Escrevi duas folhas no livro tombo, comentando o cuidado que se deveria ter com os moradores e o futuro do Arquipélago.

No avião de volta, pensei quanto havia aprendido e quantas imagens tinha agora disponíveis para minha alegria.

Eu realizei um sonho de menina 40 anos depois.

Foi uma das coisas mais importantes que a mulher fez pela menina: ao invés de calar, acalentou o sonho e realizou-o quando foi possível.

**https://www.tamar.org.br/index.php

*Os benefícios da praia comprovados cientificamente

http://nascecme.com.br/os-beneficios-da-praia-comprovados-cientificamente/