Não me venha dizer que entende
Os explícitos podiam ser enumerados. Revividos, em sua mente, com uma certa riqueza de detalhes sinistros. Aqueles, que marcaram mais.
Na tenra idade, alguns flashes que rememoravam a narrativa do inenarrável, construíram na psique robusta muralha a rodear a inocência que se quedou acuada e profanada...Aquela língua, nojenta, imperativamente afastando os lábios da pequena boca estupefata. Ao resistir, as mãos forçaram-lhe a passagem, junto com a saliva farta. Inesquecível terror a lhe povoar as noites, por anos e anos...
Não muito mais tarde, quando apenas os bicos dos seios se adivinhavam por baixo do uniforme escolar, o vão embaixo da escada tornou-se terror a lhe impedir a subida dos degraus um a um, com serenidade e boa postura. Era sempre uma correria, alternando olhares entre a escada e o vão, num reviver constante da apreensão e do medo daquelas mãos que tentavam despir-lhe as roupas e do rosto, desconhecido, escondido no escuro a lhe assombrar as noites, por anos e anos...Podia ter sido qualquer um, impossibilitada que estava de o identificar...
Houvera outro episódio, no apartamento dos fundos, enquanto aguardava a vizinha retornar. Paralisada, as pernas não conseguiam se mover enquanto sentia o corpo masculino se encostar no seu, claramente demonstrando o desejo latente. Nem o chamado da mãe, apesar de tê-la salvado da consumação, pôde impedir os pesadelos que insistiam em se repetir, por anos e anos...
Ainda nessa mesma fase de pré-adolescência, num inofensivo passeio com um casal conhecido, o toque de idosas mãos trêmulas tentando alcançar-lhe o sexo foi capaz de despertar-lhe todos os traumas que havia lutado tanto para abafar em si.
Sua vida sexual nem havia começado e ela se sentia irremediavelmente violada. Adulta, muitos outros episódios se seguiram, num avilte constante à dignidade, por anos e anos...
Os explícitos podiam ser enumerados. Os dissimulados, inúmeros no decorrer da vida, eram como violentos socos a exalar ódio e machismo. Em todos, na solidão de sua condição de mulher, profunda consumição, sob a pele gelidamente anestesiada. Enquanto a mente gritava e a boca se calava, amordaçada pela hipocrisia social, o afogamento seguia lento, constante e angustiante, sob intensos espasmos de medo, aflição e desespero.
Emergir e sobreviver, diuturnamente, exige da mulher uma coragem infinda.