A crueldade humana
Sempre gostei da área de humanas. Desde o ensino fundamental era apaixonado pelas aulas de história. O tempo passou e meu interesse aumentou, atingindo ainda a filosofia, a sociologia e a psicologia, minha área de estudo. Mas no que se refere à História, sempre gostei de viajar no tempo, voltar nos tempos antigos, distantes, para entender como as coisas começaram, como se desenvolveram e como chegaram ao que são hoje em dia. E nessas viagens fiz muitas descobertas. Já me diverti bastante, porque somos seres extremamente curiosos! Já me emocionei muito, porque mesmo a História real é capaz de ser tocante, romântica, inspiradora. E também já me revoltei. Muito. Dramaticamente. Profundamente. Intensamente. Porque apesar de sermos capazes das mais belas construções e inspirações, podemos também ser os autores das mais pérfidas e cruéis manifestações de perversidade e destruição. Podemos curar. Como já curamos. Mas também podemos matar. Como já matamos.
Recentemente fiz mais uma leitura sobre os eventos acontecidos durante a Segunda Guerra Mundial. Sempre gostei desses estudos. Não pelo seu caráter trágico e desumano. Jamais. Mas por entender o quanto é importante que sejamos apavorados pelo lado mais sombrio que nós, pessoas, seres aparentemente racionais, podemos expressar diante do mundo, para que nunca sigamos por tais caminhos.
Trata-se do livro O Tatuador de Auschwitz, que conta uma história [real] de amor entre dois prisioneiros dos campos de concentração. Não vou me alongar na descrição do livro, talvez possa fazer isso em outra oportunidade. Quero apenas me resumir a um ponto que me incomodou logo no começo da leitura quando o autor nos faz sentir uma fração mínima da dor e do desconforto que foi vivido por tantas pessoas inocentes, vítimas da ganância, da maldade, da arrogância e da petulância humanas. Vítimas de algozes que no final das contas, além de serem retratados na história como vergonhosos, desprezíveis e intragáveis, viraram verme no final de suas funestas vidas, como qualquer outro ser vivo que algum dia venha a ter o ponto final de sua existência decretado.
No primeiro capítulo acompanhamos um pouco sobre o transporte dos prisioneiros aos campos de concentração: em vagões de gado. Amontoados. Sem qualquer luxo. Sem o mínimo de conforto ou dignidade. Tendo baldes para fazerem suas necessidades. Baldes que, com o movimento dos vagões, derramavam seu conteúdo fétido por entre aquelas pessoas, de carne, osso e sentimentos, que eram tiradas de suas vidas, de suas famílias, de suas histórias, para servirem aos desígnios de sujeitos sombrios.
O tormento não acaba. Ao chegarem naqueles lugares receberam em seus corpos uma tatuagem. Feita sem permissão. Feita sem consulta. Que retratava um número. Eles perdiam sua humanidade, sua integridade e sua dignidade. Tinham suas histórias, seus projetos e seus sonhos reduzidos a nada. Perderam seus nomes. Já não importavam. Agora não passavam de números.
Banhos desconfortáveis, cabeças raspadas [de novo, sem a menor consulta sobre suas vontades ou preferências], camas de feno. Seres humanos tratados como insignificantes por outros seres humanos considerados por si próprios como superiores, como mais dignos, como especiais; seres humanos que, ao se colocarem sobre outros, esqueciam-se de que ao final de sua caminhada o mesmo destino lhes aguardava: o vazio do esquecimento. Para onde todos nos encaminhamos. Sejamos quem formos. Tenhamos o que tivermos. Ao final é o que nos restará: sermos esquecidos.
Gostaria muito que você lesse ao livro, mas retrato esses pontos para relembrar uma coisa simples que nos últimos tempos parece ter sido esquecida: podemos ser tremendamente cruéis com outras pessoas. Mas acho que além de sutil posso estar sendo ingênuo ao dizer que esse fato tenha sido esquecido. Porque eles se repetem diante de nós todos os dias. Em magnitudes menores, como a de um homem insatisfeito consigo mesmo que, desrespeitando o trabalho de uma mulher, arranca de suas mãos a mangueira e a agride covardemente. Magnitudes que podem se intensificar. Que podem ganhar proporção. E alcançar aqueles sujeitos covardes que, na calada da madrugada, na escuridão sobre a qual se escondem, chutam e matam pessoas que, sem rumo, sem escolha, tiveram que “aceitar” a rua como última opção. Coisas que assustam. Coisas que doem. Coisas que me incomodam. Coisas que me angustiam. Coisas que colocam lágrimas nos olhos e me fazem entender como fomos capazes de, anos atrás, termos trancado milhões de pessoas em campos de trabalho forçado, tratá-los como cobaias e descartá-los como lixo.
Pense você. Na tranquilidade da sua vida. Ainda que não tenha muito. Ainda que tenha o suficiente para viver. Como seria se, de uma hora para outra, fosse arrancado da sua família, dos seus amigos, da sua cidade, da sua vida, para ser lançado a uma prisão sem ter cometido crime algum e ter como tratamento os piores e mais sangrentos protocolos criados por mentes humanas? Isso aconteceu. Ainda acontece. Essa desumanização não é desoladora?
Podemos não trancar pessoas em cativeiros, mas será que estamos tão ilesos assim da crueldade humana? Não somos aqueles que ofendem, maltratam e segregam outros por sua orientação sexual? Ou por sua inclinação religiosa? Ou por seu jeito singular de ser? Ou pela cor que pinta sua pele? Não somos aqueles que vociferam como selvagens contra jornalistas por não concordarmos com suas opiniões e querermos a todo custo calá-los por não dizerem o que queremos ouvir? Estamos mesmo tão longe daqueles que marcam as pessoas na pele sem nem lhes pedir licença?
Que possamos refletir. Sinto-me farto de tanta maldade e crueldade. Mas sendo ainda jovem tenho a esperança da juventude. Porque em meio ao caos sempre há pessoas dispostas a curar a ferida de outras. Sempre há humanos dispostos a abrir os braços e acolher os rejeitados, abrigar os desabrigados, aceitar os abandonados. Sempre há alguém que se dispõem a ouvir, aceitar, respeitar e consolar aqueles que tiveram seus corações esmagados, oprimidos, pela crueldade humana. A História nos mostra que podemos ser aqueles que lançam contra prédios aviões que destroem sonhos. Mas a mesma História nos revela que podemos ser aqueles que entram no meio do fogo para salvar uma criança que grita desesperada por socorro. Quem você quer ser? De qual lado você quer estar?
No final, todos seremos esquecidos. Mas os bons partirão com a certeza de que, de alguma maneira, tendo contribuído para o sorriso, o alívio de alguém, continuará como parte da vida. Não é que os bons nunca sejam esquecidos. Os bons nunca partem de verdade. Misturam-se à vida que ajudaram a tornar mais bela. Quanto aos maus, se forem lembrados, será com vergonha e desprezo: exemplos de como não ser, do que não fazer.
(Texto de @Amilton.Jnior)