Prove a você, não aos outros
Na era da tecnologia, a vida humana mudou. Antes existia uma coisa chamada privacidade. As pessoas só sabiam das nossas vidas se falássemos. Só sabiam se havíamos feito uma viagem caso chegassem em nossas casas e vissem uma foto exposta no quadro preso na parede. Então perguntavam. E nós respondíamos. Até falávamos como fora a experiência. Os perrengues que passamos. As descobertas que fizemos. E o quanto foi difícil voltar para casa. Caso contrário, caso não disséssemos ou não vissem fotos em nossa casa, ninguém saberia que fizemos uma viagem. Não existia “story”, logo ninguém sabia se tínhamos ficado doentes ou não. Não existia “feed”, logo nossa vida não era uma verdadeira narrativa para que conhecidos e desconhecidos assistissem, compartilhassem e palpitassem.
Mas hoje as coisas estão diferentes. Hoje não precisamos mais esperar por um famoso e estrondoso reality show dar às caras no começo do ano para que possamos acompanhar as pessoas em sua intimidade. Nós mesmos somos o nosso próprio Big Brother. Basta um celular na mão. Uma conta nas redes sociais. E nossa existência é televisionada. Não apenas a nossa. Mas a de todas as pessoas.
Quando você viaja agora não precisa mais esperar que seu grande amigo o visite em sua casa para que as experiências sejam compartilhadas e as fotos sejam mostradas. Tudo é narrado nos “stories”, compartilhado em tempo real. Você não sabe se vê o golfinho que deu o ar da graça no meio do mar ao vivo ou através do retângulo do seu celular enquanto o grava. Porque agora esse é o importante. Que nossa vida seja exibida, registrada – não na memória do nosso cérebro, mas na do celular, uma memória que, por um incidente, pode nunca mais ser recuperada. Uma memória que não é capaz de fornecer a mesma sensação que a experiência real, aquela quando ocorre, pode proporcionar.
Mas será que esse comportamento de televisionar nossas vidas não advém de outro comportamento, mais antigo, que nos impulsiona a ter aquela necessidade adoidada por provarmos algo às outras pessoas? Parece que nós, seres humanos, estamos constantemente vivendo em função da avaliação e da expectativa alheias. Não vivemos para nós. Vivemos para os outros. Não queremos ser impressionados pela nossa vida. Queremos que a nossa vida impressione aos outros. E assim desperdiçamos a dádiva da existência.
E agora, com esse mundo tão tecnológico, com redes sociais para todos os gostos e desejos, parece que estamos num grande caldeirão de competição. Quem tem a melhor foto? Quem fez a melhor viagem? Qual “story” foi o mais visualizado? Quem tem mais engajamento? Quem é mais ouvido? Preciso provar que sou mais feliz! Preciso provar que minha família é mais bonita! Preciso provar que o meu casamento é perfeito! Preciso provar que existo!
Será que existimos mesmo? Ou será que não somos apenas um monte de carne e osso? Porque existir é colocar-se para fora, para a vida, para as oportunidades da existência. E o que temos feito é nos reduzirmos a um feed organizado que comprove e prove o quanto a nossa vida é fantástica – embora, por trás das câmeras, ela esteja tão vazia de significado.
“Quantas chances desperdicei, quando o que eu mais queria era provar pra todo mundo que eu não precisava provar nada pra ninguém”
Essas palavras, de Renato Russo, servem como um belo encerramento para o pensamento de hoje. Nesse comportamento de mostrarmos uma vida que não temos, desperdiçamos a chance de viver a que podemos. E perdemos a chance de entender que o mundo não tem nada a ver com a nossa história, com as nossas conquistas ou com as nossas experiências. Apenas nós temos. Apenas nós importamos quando o assunto é a forma como viveremos a nossa oportunidade de aqui estar. Viver em função da expectativa, do reconhecimento ou do elogio alheios nos encaminha a uma vida medíocre, mediana. Não desenvolvemos o nosso verdadeiro potencial porque ficamos iludidos com o desejo por sermos melhores que os outros. E isso não importa. No fim, todos morreremos. E as fotos ficarão aqui, juntando traças. Não levaremos conosco aqueles vídeos que gravamos com a intenção de repercutir. Ao final da vida tudo o que teremos como prova de que a vida foi satisfatória, apesar de suas dores, serão as marcas no coração – mas só seremos marcados no coração se, realmente, existirmos. Caso contrário as marcas da vida serão como aqueles desenhos que fazemos na orla da praia e que se apagam quando as ondas os encobrem – o tempo destruirá a superficialidade daquilo que não vivemos quando deveríamos tê-lo feito.
(Texto de @Amilton.Jnior)