Não é sobre cartas
Entrei numa sala intimidadora pela primeira vez, parte de mim sempre se empolgou com situações e lugares novos e a outra parte sempre se apavorou. Gosto de listar as possibilidades de tudo na minha cabeça, hora isso me acalma, hora isso me perturba. Cada um estava ocupado no seu próprio grupo, fazendo suas próprias coisas. Você estava lá pela primeira vez também, no canto esquerdo com poucas pessoas ao redor. Eu queria estar cercada de pessoas, sempre fui expansiva e comunicativa... mas tinha um certo charme na sua solidão que me deu vontade de te fazer companhia. Me aproximei e me apresentei. Perguntei o que você estava fazendo, você disse que ainda nada mas que tinha um plano de montar o castelo de cartas mais alto daquela sala. Perguntei curiosa então o porquê de você não ter começado a montar, já que provavelmente ia demorar muito pra chegar na altura que você queria (e já comecei a me questionar se você estava sozinho por ser maluco). Você pareceu chateado por ser mais uma vez incompreendido, mas depois de eu insistir um pouquinho mais você me contou que ainda não tinha começado porque um castelo de cartas era algo muito difícil de se montar, levava tempo, precisava ter muita paciência e cuidado, que sozinho não ia dar mas que também não confiava em ninguém pra te ajudar porque ninguém entenderia o quão delicada é essa tarefa. Eu entendia você de um certo modo, sabe? Realmente, não é fácil construir algo tão grande e frágil. Eu até poderia me oferecer pra te ajudar, porque eu sabia exatamente o que você queria, mas eu não tinha a delicadeza e a calma necessária pra isso.
Eu conheci outros grupos e outras pessoas que estavam fazendo outras coisas. Nem por isso deixava de te admirar. Nem por isso deixava de achar você incrivel, ambicioso e cuidadoso. Muitas vezes eu enxerguei o seu olhar de admiração de volta pra mim, sabia que você me achava corajosa e gostava de saber as outras coisas que eu estava descobrindo enquanto você ainda estava tentando achar a hora certa de começar seu castelo. Depois de 2 anos, você me falou pela primeira vez: sabe, eu gosto muito de você, você me entende, é muito companheira... eu queria conhecer alguém igualzinho você um dia pra essa pessoa me ajudar com minhas cartas. No dia, eu sorri e disse que também gostava muito de você, me senti lisonjeada e muito especial por você me enxergar dessa forma. Mas naquela noite, enquanto essa frase ecoava na minha cabeça em looping eu comecei a me questionar o que tinha de errado comigo pra ter que ser alguém igualzinha a mim, mas nunca ser eu? O que tinha de errado comigo?
Continuei por perto, como sempre, mesmo com todos os dias isso ecoando na minha cabeça. Levou mais 3 anos pra eu ter coragem de chegar lá na sua mesa, onde você estava parado encarando suas cartas como sempre, puxar uma cadeira e perguntar com muita raiva: EI, MAS PORQUE NÃO EU? - você pareceu muito confuso, e eu continuei falando - EU SEMPRE ESTIVE AQUI, EU SEI COMO SE CONSTRÓI UM CASTELO DE CARTAS, VOCÊ NUNCA DEU UMA CHANCE PRA SABER SE PODEMOS SER UMA GRANDE DUPLA OU NÃO. Você sorriu e me abraçou como quem também esperou 5 anos para esse momento. Entregou um monte de carta pra mim e nós finalmente começamos a montar seu castelo.
Aquela tarefa não era nada fácil pra mim. Você me pedia muita calma e eu não via a hora de ver o tamanho que ia ficar aquele castelão, eu esperei anos e anos por isso. Mas, com o tempo eu fui me habituando com aquela tarefa. Fui enxergando a beleza que a calma tinha. Quem diria que um castelo de cartas conseguiria alterar toda a minha personalidade depois de tantos anos? Logo eu que achava que já sabia de tudo sobre mim, me refiz por um castelo. Mas tava tudo bem, porque não era qualquer castelo, era o MAIOR castelo daquela sala. Eu sabia que daria certo, porque você tinha planejado aquilo por anos e anos e anos e anos, você sabia exatamente onde a gente devia botar cada cartinha e eu ouvia com amor e atenção pra não dar nada errado. No começo, vez ou outra eu me atrapalhava mas antes mesmo de eu posicionar a carta você vinha e me falava o jeito certo.
Conforme foram passando os anos eu me tornei especialista em montar castelo de carta, nosso castelo já estava gigante e eu cuidava dele todo dia com mais calma, paciência e delicadeza do que no dia anterior. De certo modo, aquilo foi te deixando frustrado e eu não conseguia entender. Eu tava fazendo tudo certo. Até que eu corrigi o seu primeiro movimento, antes de você colocar a carta. Você fechou a cara na hora e disse que não via mais sentido em ficar empilhando tanta carta. Eu disse que tava tudo bem, que nosso castelo já era o maior da sala, a gente só tinha que continuar cuidando pra ele continuar sendo. Você pareceu acalmar conforme eu fui te lembrando o quanto aquilo sempre foi importante pra você e ficou animado quando eu falei que agora era importante pra mim também. Você nunca acreditou que um dia seria tão importante pra mim quanto era pra você construir aquele castelo, mas depois de tantos anos, aquele já tinha virado o meu sonho também.
Quando você percebeu que eu falava sério sobre me importar com aquele castelo, você deixou de se importar cada dia um pouco mais. Até que tinham dias que nem na sala você aparecia e eu tava bem com isso. Aquelas pessoas da sala que no início eram estranhas pra nós, agora depois de tantos anos eram nossos amigos e quando eles me perguntavam o porquê do seu sumiço já que você não era de desaparecer eu sorria despreocupada e explicava que tava tudo bem... que montar o castelo sempre foi a coisa mais importante da sua vida e que eu tava feliz da gente finalmente ter começado a montar junto e não me importava de ir montando na sua ausência. E não me importava mesmo, aquela tal calma já tinha me consumido completamente. Eu era quase uma monge mestre das cartas.
Até que você apareceu de novo, depois de um tempão sumido. Só quando eu percebi o quanto eu tava contente com o seu retorno que eu notei a falta que você me fez naquele tempo. Tava tudo bem e normal. Como era bom achar um propósito, me sentir segura e não mais intimidada naquela sala, ter sua companhia que sempre foi tão magnética pra mim. Eu soube na prática o que significava plenitude. Um dia, recebi a notícia de que você tinha chego mais cedo na sala, resolvi me apressar pra chegar um pouco antes também. No caminho só pensava o quanto era bom ter a sua companhia de volta e que se você estava até chegando mais cedo, talvez agora nosso castelo ficasse até melhor que antes, né?
Quando entrei na sala, eu simplesmente não sabia o que sentir. O lado esquerdo que antes tinha nosso castelo gigantesco estava completamente vazio, o chão todo forrado com 11 anos de cartas. E você estava lá, na sua mesa encarando as cartas mais uma vez. Como se o castelo nunca tivesse existido. Como se os anos nunca tivessem se passado. Como se você nunca tivesse achado uma dupla na altura de tal missão. Você me perguntou: Você não vai falar nada? E eu ainda sem esboçar nenhum tipo de reação, atônita e em choque te perguntei: o que você quer que eu fale? Dei as costas e não voltei mais na sala.
Lembrete: da próxima vez utilizar um material menos frágil.