Cansaço: sinônimo para fracasso?
Vivemos tempos difíceis. Não é uma suposição. Nem uma hipótese a ser estudada. Estamos, de fato, em tempos difíceis, sombrios e tenebrosos nos quais estar na condição humana nos inferioriza. É isso mesmo. Se você é um ser humano então você está sendo desconsiderado, desvalorizado, deixado de lado. A dignidade humana foi jogada na lata de lixo de uma sociedade governada por ideais distantes demais da realidade na qual nos instrumentalizaram com objetivos mesquinhos que atendem a apenas uma pequena parte da população que, privilegiada, não teve seu direito de ser humano negado. Ao contrário. Foi reafirmado a partir da miséria das outras pessoas.
E digo isso porque na realidade em que vivemos a palavra “cansaço” parece ter se transformado em sinônimo para fracasso. Você não pode se cansar. Não importa se precisou pegar três ônibus para chegar até o trabalho, mais três para voltar para casa e, além de toda a correria no emprego, ainda teve coisas a fazer no lar. Não importa se o trânsito ficou fechado naquele engarrafamento do meio-dia, justo no dia que o ar-condicionado do seu carro quebrou e o sol lá fora ardia beirando os quarenta graus. Não importa se teve que virar a madrugada na frente do computador porque às sete da manhã você precisava chegar na faculdade para a apresentação de um trabalho que poderia decidir seu futuro acadêmico. Não importa se passou a semana inteira correndo de um lado ao outro procurando por formas de sobreviver já que está sem as tantas exigências de qualificação que o mercado de hoje elencou como condições para contratações. Não importa. Nada disso importa. Se você está cansado, apenas querendo uma cama para se deitar e dormir, deixando de lado a correria desenfreada desse mundo doido, você é um fracassado. Aliás, ser um ser humano o torna um fracasso. Porque a nossa condição humana, pelo menos a da grande massa, foi reduzida a nada.
E acontece que nessa postura irracional e desumana, muitos realmente se sentem culpados quando não aguentam mais e colocam a cabeça por sobre o travesseiro – outros não conseguem chegar até a cama e o corpo desliga em meio aos papéis espalhados com a tela do computador piscando. Muitos se sentem culpados por experimentarem uma necessidade inerente à condição humana: cansarem-se. Mas, como eu venho dizendo, esqueça isso de condição humana. Você não pode ser um mísero ser humano. Deveria ser como um robô – ou mais que isso – e ter uma energia infindável que alimente o sistema e faça a roda da economia truculenta girar.
Esqueça os momentos de lazer, as horas com a família, a brincadeira no parque com os filhos! Sonhou em levar a namorada para conhecer Paris quando ambos tivessem um período de férias? Esqueça isso. Você não deve se divertir. Esperou ansiosa pelo final do ano para viajar com o amor da sua vida pelas terras sulinas? Esqueça isso também. Janeiro é logo ali e a vida precisa continuar. Esqueça a diversão. Esqueça a tranquilidade. Trabalhe enquanto eles dormem. Estude enquanto eles se divertem. Seja mais que um simples humano.
Esse discurso enganou – e ainda engana – a muitos que, na atualidade, vivem um esgotamento físico e mental capaz de levá-los ao fim de suas existências. Muitos, dominados por essa noção de que devemos ser produtivos o tempo todo, não viram os filhos crescerem, o parceiro envelhecer, a vida passar. Pois é isso o que tem acontecido enquanto ficamos alheios da nossa condição humana: a vida passa, não passamos por ela, nada conquistamos de significativo, somos um acumulado de frustração e arrependimento.
Trabalhe enquanto eles dormem e morra de estresse. Essa é a verdade que poucos elucidam. É o verdadeiro discurso que deveria estar em voga nessa sociedade que precisa resgatar a importância e o valor da condição humana. Não quero dizer que precisamos cruzar os braços e deixar que a preguiça nos governe. Mas chegamos ao ponto de nos culparmos por termos uma necessidade humana tão básica quanto o sono, o sono que restaura, o sono que reenergiza, o sono que promove nossa saúde, o sono que nos ajuda a nos desintoxicarmos das poeiras do cotidiano. Temos estado tão ludibriados por essa exigência de sermos sempre produtivos que nos esquecemos de que um dia nossas forças acabarão e tudo o que fomos capazes de produzir não será o bastante para nos poupar do fim inevitável que, quando acontecer, tratará de nos substituir por outros que produzirão em nosso lugar.
Trabalhe. O bastante para viver. Produza, o bastante para se orgulhar da sua produção. Mas não deixe de ver e sentir a vida acontecer diante dos seus olhos, envolta de você.
(Texto de @Amilton.Jnior)