Fernão Capelo Gaivota e Homem Duplicado

A obra de Richard Bach, “Fernão Capelo Gaivota”, é uma das obras mais vendidas do mundo. O livro narra a jornada solitária de uma gaivota que não se conformava em levar uma vida cômoda e previsível como as demais, voando baixo todos os dias com o olhar fixo na superfície, em busca de restos de alimentos. Acordar, voar baixo, comer restos, passar o tempo e dormir para recomeçar o ciclo no outro dia.

O mais interessante nessa obra nem é o fato de que Fernão seguiu seus instintos e continuou buscando voos cada vez mais altos, nem o fato de que, ao morrer, encontrou no "céu das gaivotas" outras sonhadoras como ele, que trilharam o mesmo caminho, e evoluíram, estando prontas para voos ainda mais altos. O ponto forte do livro é o contexto social.

A atitude de Fernão de buscar voos cada vez mais altos, treinando e se esforçando para conseguir voar mais e melhor a cada dia, irritava as demais gaivotas que aparentemente estavam conformadas e satisfeitas em não fazer tanto esforço por nada, já que o alimento de que precisavam estava na superfície da água e não no céu. Se as demais gaivotas estavam satisfeitas com sua vida porque a atitude de Fernão lhes incomodava tanto?

Podemos fazer um paralelo com nossa própria vida. Talvez você tenha alguma experiência nessa área, mas se não tiver, vou compartilhar a minha. Quando parei de ingerir bebida alcoólica fui alvo de muitas críticas, zombação, alguns sermões e inclusive tive que passar por afastamento de alguns pretensos amigos. Aqueles que não se afastaram fisicamente o fizeram de outros modos. Eu já não era bem vindo nas rodas de conversa, parece que meu "papo" não tinha mais graça. Meu silêncio nas conversas de boteco se tornou indigesto.

Ainda bem que o mesmo não ocorreu com o cigarro. Essa mudança todos respeitaram, pelo menos no discurso. Sempre que alguém acendia um cigarro perto de mim - que já não fumava - disparava um olhar revoltado ou ao menos despeitado para o meu lado. É como se com minha atitude, que só dizia respeito a mim mesmo, eu estivesse criticando quem fuma ou pregando o fim do tabagismo. Ao que parece as pessoas se incomodam quando alguém tem a coragem e a força para fazer algo que elas sabem que também deveriam estar fazendo. Nosso exemplo tira as pessoas da zona de conforto. Mas para fazer justiça, é bom que se diga que sempre tem uma margem mínima, quase inexistente, de pessoas que não dão a mínima para nossas mudanças, e estão confortáveis com suas escolhas nada equilibradas.

Nossos hábitos tem um impacto gigantesco em nossa vida social, e só não nos damos conta disso porque geralmente estamos cercados por familiares e amigos que possuem os mesmos hábitos, inclusive alimentares. Basta mudar algo que desestabilize essa frágil hegemonia para seu mundo ser revirado de ponta cabeça.

Foi assim quando decidi parar de ingerir carne. Houve uma verdadeira guerra, e ainda hoje há muito desconforto e situações no mínimo deselegantes. Por que o que a gente come ou bebe incomoda tanto os outros? Por que aos outros parece mais importante que você coma e beba o mesmo que elas, invés de que vocês partilhem dos mesmos ideais de vida, dos mesmos valores éticos, dos mesmos princípios?

É que as pessoas perderam sua identidade, já não sabem quem são, e por isso se acostumaram a terem os mesmos gostos, as mesmas práticas, os mesmos objetivos, como uma forma de pseudo-segurança social. Se descobrir dá trabalho, copiar os outros é fácil. Por isso o índice de plágio nos trabalhos escolares e até universitários é tão alto. Em uma sociedade que valoriza mais o fim do que os meios, o que importa é a nota no fim das contas, e não o processo de aprendizado no caminho. E nada pode ser tão errado se todo mundo estiver fazendo o mesmo, não é verdade?

Isso me lembra outro livro, "O Homem Duplicado" de José Saramago. Brilhante autor... Estamos em uma linha de produção onde tudo o que não queremos é autenticidade, originalidade. Não queremos lidar com a pluralidade, pois entender e aceitar todo mundo dá trabalho. Mais fácil colocar todos numa caixinha, na caixinha é seguro. E para garantir o sistema, vamos criticar duramente quem colocar um dedo mínimo que seja para fora da caixa, vamos adverti-lo, vamos ameaçá-lo e até mesmo usar de ofensas e violência se for necessário, afinal, o que faríamos se as pessoas começassem a sair das caixas?

Na ilha de Delfos, na antiga Grécia, se localizava o mais famoso templo dedicado ao deus Apolo, em cuja fachada se lia “nosce te ipsum”, que significa, “conhece a ti mesmo e conheceras o universo e os deuses”. A busca pelos grandes mistérios do universo começam dentro de nós, em uma busca profunda e solitária. Ninguém pode caminhar nosso caminho, ele é só nosso. É trabalho exclusivo, pessoal e intransferível. Só nosso.

E se é imprescindível conhecer a si mesmo, também o é aprender a lidar com as pressões daqueles que morrem de medo de abrir suas próprias caixas, e eventualmente até mesmo absorver as perdas, aceitar o afastamento de familiares e amigos, e respeitar o repentido desinteresse de alguns pelo nosso novo eu. O que não podemos é nos entregar à covardia de aceitar um destino medíocre por medo de contrariar quem quer que seja, pois lá no "céu das gaivotas" tem um montão de gente como a gente que preferiu enfrentar o mundo só para ser a gente mesmo.