SUICÍDIO: uma janela para uma paz ignota!
Uma das frases mais conhecidas do escritor, e filósofo francês Jean Paul Sartre é a seguinte: “O homem está condenado a ser livre”. Eu digo ainda mais: o ápice, o clímax mais intenso da liberdade, o cume mais profundo da liberdade reside no ato do suicídio. O suicídio é a expressão máxima que um ser vivo pode manifestar a sua própria liberdade.
Não falo destes típicos suicidas imbecis que vemos tanto nos noticiários, que se matam por pura covardia, por não superarem momentos ruins pelos quais passam, que se matam por perdas amorosas, por problemas financeiros, ou por convicções religiosas como fazem os terroristas islâmicos, ou que se matam vitimadas por uma tristeza depressiva, etc. Não falo destes tipos patéticos e débeis de suicidas. Falo do suicida que primeiramente é apaixonado pela Vida, e pelo seu mundo. Não me refiro a uma paixão que cega à própria razão e a intelectualidade. Falo de uma paixão que é manifestada de várias maneiras para obter o que se quer, consciente da ficção construída do que se quer possuir. Uma paixão inteiramente egocêntrica, onde eu uso e manipulo a vida a fim de obter o que tenciono conquistar, lúcido também da ilusão que é toda conquista.
Somos livres para morrer, contudo nunca seremos livres da morte enquanto se permanece "vivo", se é que algum dia, ou em algum momento Já "vivemos" mesmo! O que é “viver”? Como será "viver"? Por que precisamos "viver"? Algo realmente precisa "viver", no sentido literal de que somos "essenciais à vida"? O que é "ser essencial a alguma coisa"? Nada é essencial, e sabemos muito bem disso, mas preferimos o auto-engano.
Há vários séculos a humanidade tem fabricado sentidos e propósitos que tenham o teor de se mostrarem convincentes e irrefutáveis para não se suicidar. A humanidade construiu desde o seu princípio deuses, fabricam-se sonhos para se continuar prosseguindo, inventaram e ainda inventam hoje em dia verdades e certezas tidas como absolutas e irrefutáveis, para formar o alicerce e as colunas que possam sustentar este absurdo que se chama Existência, e esperam, cheios de fé em suas certezas, a morte surgir para os transformarem em pó. E esses: "todo o mundo deveria ser...", "a humanidade deveria ser...", "as coisas deveriam ser..." não passam de novos imperativos categóricos frutos da insatisfação narcisista do homem? As sirenes e marteladas da Lei só visam à manipulação do homem, e seus inerentes instintos, tão domesticados por multi-mecanismos inventados pelos "melhoradores da humanidade", cujos alicerces da mesma estão impregnados de sentimentos de vingança, de pré-conceitos, e cédulas falsas, tão combatidos por essa "divindade justa e inexorável!"
Tudo o que há nesse mundo, e que foi inventado pelo homem para nos escravizar de forma sutil, a fim de que não percebamos, e quem sabe tudo o que o homem inventa e “cria” (pensando sem duvidar que seja justamente ele quem inventa e cria) não seja um outro engodo e embuste criados por coisas que nunca nossa mente poderá perscrutar e provar suas existências empiricamente, pois estão muito além de nós. Tudo feito para se divertir a nossas custas, para zombar de nós, para nos usar como fantoches: fantoches de grandes corporações, potestades, e organizações malditas; fantoches de nossa própria mente e corpo que pensamos que podemos controlar (e pode ser justamente o inverso); fantoches de algo incognoscível que dizemos não existir, não haver, etc. As próprias cores que dizemos “ver e existir” só residem nas retinas e no cérebro, em si não há. Examinemos mais a fundo algumas questões para nos aprofundarmos no que estou querendo explanar e desvelar.
Os denominados "mundo verdadeiro", o "eu" verdadeiro, "as personalidades verdadeiras", "a psique verdadeira", "os comportamentos e ações verdadeiras" são em si desconhecidas, e com isso nem consolam e nem salvam, e nem nos obrigam a nada: a que uma "coisa" desconhecida poderia nos obrigar? Reduzir algo desconhecido a algo conhecido traz sensações de "calma, alívio, satisfação", e além disso dá uma sensação também de poder. Com o "desconhecido" vem o perigo, a inquietação, o desassossego, o medo. O primeiro instinto se volta para eliminação desses estados desagradáveis, afinal de contas qualquer explicação é melhor que nenhuma. O "por quê?" deve então, se possível, não tanto fornecer a causa em razão dela mesma, mas antes uma espécie de causa que "tranquilize, liberte, alivie", gerando um certo "prazer e consolo". Todas as supostas explicações das sensações que surgem no homem, e fora dele também, são apenas produtos, e como que pseudo-traduções de sensações de "prazer e desprazer" em seus dialetos tão equivocados. Já dizia Heráclito que "o ser é uma ficção vazia", logo tudo que emana e é inventado e projetado ao mundo por "este ser" é tão fictício, irreal quanto qualquer narrativa; aliás, nossas vidas são narrativas grotescas, pois o nosso pior delito, nosso pior pecado, nosso grande crime é continuar "vivendo ou existindo", pois não vejo divergências biológicas e nem semânticas quaisquer entre somente "viver" ou somente "existir". Existir é um erro, pois todas as coisas já nasceram mortas, fraturadas, doentes; tudo antes mesmo de vir-a-ser algo já nasceu incurável, pois o próprio existir é incurável. Não há tratamento eficaz para a condição deplorável do ser humano. Jamais haverá.
Será que a própria “Irrealidade e Realidade” são outros fantoches de algo muito mais “maior e até hoje impensável, e ignoto”? Todos os “conceitos, certezas, mentiras, idiossincrasias, descobertas, dores, sofrimentos, sensações, pensamentos, ilusões, mundos, etc.”; Tudo não serão outras coisas que jamais se cogitou? O que somos nós mesmos? Será que nós também não somos apenas outras meras imagens? Um algo em nós, mudanças em nós que se tornaram pseudo-conscientes para nós? Nosso dito ego, do qual dizemos: será também isso apenas uma imagem, um extra-nós, exterior? Sempre tocamos apenas na imagem, na superfície, e não em nós mesmos, e em nada. E desdenho tanto desse chamado "livre-arbítrio" e também do vosso "não-livre-arbítrio". Vontade e Não-Vontade não passam em si de meras palavras com seus significados e representações cheios de mitologias.
Com o homem, a arte da dissimulação atinge o auge: a ilusão, a lisonja, a mentira, o engano, as intrigas, os ares de importância, o falso brilho, o uso da máscara, o véu dos convencionalismos, a comédia para os outros e para si próprio, em resumo: o circo perpétuo da lisonja e o fingimento, são de tal forma a regra e a lei, que quase nada é mais inconcebível nos homens do que um instinto honesto e puro de verdade. Estão profundamente mergulhados nas ilusões e nos sonhos, os olhos só deslizam pelas superfícies das coisas, e ai veem "formas", a sua sensação não conduz à verdade, mas apenas se contenta em receber excitações e tocar como sobre um teclado virado de costas para as coisas.
O homem sempre fabrica uma meta e um sentido que ele protege, defende e luta como se fossem verdadeiros por si mesmos, quando na verdade foi o ser humano que justamente criou para continuar vivendo, para continuar amando a vida. Cuidado com o amor, o amor pode se tornar o veneno que mais cega à lucidez humana. Estou falando de uma paixão consciente e objetiva. Consumir a vida até chegar ao ponto que se quer. E depois descartar a vida, isto mesmo, jogá-la fora, mandá-la para olho da rua, e praticar adultério com a morte para escarnecer destas duas irmãs. A humanidade não vive. A humanidade se deixa consumir pela vida, pelo tempo, e por outros homens. O homem inventa distrações e passatempos que possam desencadear um estado psicológico de felicidade e segurança. Os homens se entregam a velhice como os grandes heróis de sua época, como se fossem os grandes vencedores.
E a Vida e a Morte, filhas unigênitas do Nada, riem de cada um de nós. Podemos inverter isso. O homem é o único ser neste universo o qual dispõe de liberdade para até se matar, se assim o quiser. Martin Heidegger diz que o suicídio rouba o sentido da morte. Quer dizer que a morte tem um sentido? Existir pedras em um universo terá também algum sentido? Mas não é justamente a morte que rouba todo e qualquer sentido belo, consistente e forte da Vida? Não é justamente existir a morte que nos faz ver o quanto a existência e a vida são tão fúteis, ridículas e absurdas? A morte é quem esmaga e aniquila todo e qualquer sentido consistente e irrefutável da Existência.
Introduzir uma lógica para a morte não muda o fato de que morreremos. Introduzir belezas conceituais e dogmáticas para se querer continuar amando a vida não muda o fato de que morreremos. Tudo não passa de métodos ideológicos de consolos e consolações. Qual é o sentido de existir a "morte"? E se há um ser ou uma força superior por trás da autoria da existência, por que ele optou em criar a morte e inseri-la em todos os seres existentes? Só havia esta opção? Como poderemos saber?
É minha consciência que me revela que vou morrer, gerando assim o meu medo e o meu horror diante desta revelação, que me compele a construir sentidos para a vida, para a minha vida, por mais que estes sentidos não existam em si mesmos, e sejam tão vazios e fictícios quanto nossas certezas, e até o nosso dito “livre-arbítrio”.
Vamos examinar outro ponto: E se o “livre-arbítrio” for uma mentira construída pela nossa mente, pelo nosso cérebro? Essa mesma mente que brinca conosco, que nos manipula, que nos controla, que faz o que bem querer, e que nos diz que “somos os autores de nossas escolhas, decisões, e volições”? Somos mesmos livres? Temos mesmo liberdade de forma plena nessa existência? Acho que não, pois até a nossa ânsia de querer liberdade é escrava do próprio desejo de liberdade.
A morte não nos dá sentido de nada, não nos ensina nada, não nos revela nada. Quem me ensina algo, quem me revela algo, e constrói algum sentido para a vida é a consciência de minha existência, e a de que estamos vivos. Neste ponto, o próprio ser é quem é o sentido de sua própria existência, e de sua vida.
O suicídio é um ato que necessita de uma ação, e toda ação necessita de um autor ou de um agente causador para ser efetivada, para se tornar um ato. Esperar pela morte é um ato de passividade, onde o indivíduo entrega completamente o ato de extinção da vida para as mãos da morte, ou pelo tempo, ou por qualquer agente que desencadeie nossa extinção. O suicídio é um ato onde o individuo desperta e sai da passividade, e se torna o sujeito/autor/ativo da ação e do ato a ser concretizado. O Deus anunciado dos judeus, e de todas as civilizações humanas em todos os períodos da humanidade, nunca existiu; contudo eu sinto, logo talvez eu exista, e tenho consciência de minha existência indefinida e monstruosa, e das coisas ao meu redor, portanto “eu sou Deus” porque Eu próprio sou o sentido de minha existência e de minha inteira liberdade? Não. “Eu sou Deus”, logo, partindo para outro viés de pensamento, “eu sou Deus”, sou um mito, eu sou um nada idealizado, um nada antropomorfizado, um nada que quer existir, que almeja ser amado, querido, respeitado, divinizado, um nada que quer ser real, substancialmente REAL; mas sendo “Deus”, sou completamente uma ficção sem autor, sem mundo, sem palco, sem personagens, isento de tudo.
O suicida se torna um “Deus”, porque ele afirma inteiramente a sua própria liberdade ao se tornar autor e consumador de sua própria aniquilação, aniquilação esta produzida pela minha inteira liberdade e vontade, e somente “um Deus” tem plena liberdade. Terá mesmo? Só podemos saber se tal ato for consumado por completo. A existência de um Deus implicaria que a humanidade inteira estaria escravizada segundo os propósitos e presciências deste mesmo, logo a existência de um Deus anula completamente a minha liberdade, liberdade esta ainda digna de contrariedades.
O suicida se torna “Deus”, porque ele afirma, confirma e ativa a plenitude de seu arbítrio, arbítrio este que somente “um Deus” poderia possuir. Não é a toa que o genial escritor Fiódor Dostoievski: “Se o mundo fosse um trem; se a vida fosse uma passagem, se Deus existisse e eu me encontrasse com Ele, eu devolveria o bilhete".
A Vida é como uma criança que se entedia de tanto brincar com o mesmo brinquedo, e resolve abandoná-lo de vez, pois ela deseja um novo brinquedo, um brinquedo diferente, um brinquedo que ela nunca tenha visto antes, embora a meta de todo brinquedo sempre seja a mesma: entreter e divertir a criança, o ser. Assim a Existência faz isso com todos os seres que existem neste universo.
Contudo o ser humano é o único ser que possui liberdade total de antecipar seu próprio fim (possivelmente é claro!), ao qual sabemos que é inevitável. Pulemos então nos braços da morte de propósito, conscientemente. Pular no abismo da Morte, e neste pulo zombar e desdenhar de tudo o que é deixado pra trás, e de tudo o quanto se poderia ainda fazer no futuro. Zombar e desdenhar até de si mesmo neste pulo premeditado. Isto é um ato de insanidade? Não meus amigos. Pular nos braços da Morte para lhe vomitar no rosto nosso desdém e nossa repulsa por ela, ridicularizá-la ao mostrar que não a tememos. Como disse Nietzsche “livres para viver a seu tempo, livres também para morrer a seu tempo”.
O filósofo alemão Arthur Schopenhauer afirmou certa vez que “o homem está condenado não à morte, mas sim a vida”, desdenhando sua aversão pela existência como um todo. Já o filólogo Nietzsche, um apaixonado pela vida e que já fora até um discípulo das ideias de Schopenhauer, mesmo padecendo de uma doença que o atormentava diariamente, nunca deixou de amar a vida, o mundo, de tentar criar novos valores para nosso amor pela vida e pelo mundo crescessem. Já Nietzsche era a favor da morte voluntária, isto é, do suicídio na hora certa, no momento certo. Nietzsche afirmava que “não está em nós impedir nosso nascimento, mas podemos corrigir esse erro: pois às vezes é um erro. Quando alguém se suprime, pratica a coisa mais respeitável que há... Morrer de uma maneira orgulhosa quando não é mais possível viver de uma maneira orgulhosa. A morte escolhida voluntariamente, a morte escolhida no momento oportuno, com clareza e alegria, consumada em meio a filhos e testemunhas: ... Assim como uma avaliação real (daquele que decide tal escolha) sobre o que se alcançou, e do que se quis, uma soma da vida.” Nietzsche criticava a chamada “morte natural”, que para ele não existia morte natural, pois segundo ele “toda morte é um suicídio”. Neste ponto eu discordo: toda morte é um assassinato. No livro “O Viajante e sua Sombra”, Nietzsche novamente analisa sobre a questão da morte voluntária (o suicídio), e a incentiva quando um indivíduo consegue concretizar sua missão a qual ele próprio criou para si.
Para que continuar vivendo depois que cumprimos nossa missão, mesmo que essa missão seja não cumprir nada, não ter meta alguma, não obedecer ninguém, por que continuar? Para se provar que se é forte, que se é útil e indispensável a si mesmo, ou a algum setor social? Como se fôssemos uma mera engrenagem, que nunca será esquecida, enxertada numa indústria, e que depois de um certo tempo é substituída por outra?! Nietzsche critica o que o cristianismo fez com as consciências das pessoas, enchendo-as de medo e remorso sobre suas ações, as quais poderiam ser punidas após a morte por um Deus justo e de amor, e que também só esse Deus tinha o direito de tirar a vida de alguém. Nietzsche odiava essa postura de escravo e de covarde tão presente no instinto de rebanho que vemos tão agudamente até hoje, e ainda veremos durantes vários séculos posteriores.
Afinal, cedo ou tarde, enfiar-te-ão no navio da morte contra tua vontade, e quando isto ocorrer, quem respeitará a tua liberdade de querer continuar vivendo por aqui? A Morte? Claro que não. Vamos rir e zombar da Morte, e de tudo.
Sejamos os autores de “nossas escolhas”, sejam conscientes ou inconscientes, ao menos uma vez na vida, em nossas próprias vidas e em nossas próprias mortes de uma forma bem consciente, ou insana, ou semi-voluntária, pois no mergulho pela janela de nossa própria auto-aniquilação, sejamos ao menos uma vez os heróis loucos de nosso quixotismo cotidiano e patético: abramos com as mãos trêmulas, frias e firmes essa janela secreta de nossa paz ignota e aterrorizante que o existir nos proporciona_ o suicídio: matemo-nos sem medo e sem coragem, matemo-nos sem ideais na alma e cheios de contradições em nossos corpos como convém a excelentes deuses paradoxais que odeiam vocábulos como "Redenção", "Imortalidade", "Perfeição", "Pecado", "divindade"; como deuses que não têm fé nem em si mesmos e nem plenamente em nada. De acordo com a Bíblia, "quase todas as coisas são purificadas com sangue, e sem derramamento de sangue não pode haver absolvição!"; então vamos justificar e amaldiçoar, rir e chorar, vomitar e abraçar, amar e odiar, vamos edificar e destruir com os templos absurdos os quais são os nossos corpos, por meio de nosso sangue mais precioso e inútil do que todas os ídolos que o cérebro e as mãos humanas já esculpiram e já adoraram, o maior santuário em que estão presos as nossas emoções, as nossas deidades, os nossos demônios, os nossos pensamentos, as nossas dores, as nossas ilusões: isso mesmo_ a nossa ridícula e colossal vida.
Adoremos ironicamente a nossa ausência completa de auto-adoração.
Quem sabe a paz de não mais existir seja a suprema seiva a gotejar um pouco de descanso em nossos atormentados, etiquetados, decadentes, corruptíveis, ridículos e enigmáticos "seres" que achamos e teorizamos que somos.
PS: "Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus;
Sendo justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus". (Romanos 3:23-24)