Saber separar
É comum ouvirmos que assistir a filmes violentos pode tornar as pessoas violentas e, ultimamente, tem-se dito que certos jogos podem deixar os jovens violentos, especialmente quando algum maluco entra atirando em uma escola. Mas será que dá para levar tal argumento a sério? Precisamos nos fazer tal pergunta porque, afinal, muitos são os adultos que cresceram assistindo a filmes como Rambo ou O exterminador do futuro e nem por isso se tornaram violentos. Será que o simples fato de alguém assistir a determinados filmes ou gostar de certos tipos de jogos basta para destruir a sanidade mental de uma pessoa ou torná-la violenta e antissocial? Achar que o consumo de determinados produtos culturais é o suficiente para transformar alguém numa pessoa perigosa e insana soa demasiado simplista. O mais provável é que tais pessoas que chegaram ao ponto de fazer coisas como atirar contra várias outras pessoas e meter uma bala na cabeça com certeza já eram desequilibradas e apenas se inspiraram em tais filmes e jogos. A saúde mental de alguém não se deteriora apenas por causa de um fator. São necessários muitos fatores. Aliás, estudos feitos em cima do fenômeno dos atiradores que invadem escolas mostrou que muitos desses atiradores haviam sofrido bullying e tinham problemas para se enturmar. Vale acrescentar que, até agora, nenhum estudo provou que o fato de uma pessoa gostar de assistir a filmes com tiros e pancadarias ou de jogar jogos como Street Fighter basta para despertar nela tendências violentas, sociopatas ou psicopatas. Pensemos nas diversas obras de ficção que apresentam aspectos problemáticos como estupro romantizado, tipo os mangás yaoi* , romances tipo Cinquenta tons de cinza, seriados, filmes e tantos outros produtos culturais. Embora tenhamos que reconhecer que essas obras abordem relacionamentos de maneira irreal e sejam de gosto duvidoso, não há provas de que alguém que goste dessas coisas vá se tornar um estuprador. Com certeza, quem consome estes produtos quer apenas satisfazer a um fetiche. Não são poucas as pessoas que gostam de fantasiar que estão sendo estupradas durante o ato sexual e recorrem a instrumentos sadomasoquistas. É apenas uma fantasia e, mesmo que achemos que quem lê ou assiste a certas coisas seja alguém de um tremendo mau gosto, temos de respeitar. Não há nada que possa ser feito, a não ser que um dia a pessoa enjoe disso.
Precisamos saber separar ficção de realidade. Imaginemos o filme Tubarão, suas muitas sequências e os tantos filmes que colocam os tubarões como vilões devoradores de seres humanos. Hoje, com tanta informação, qualquer um sabe que os tubarões não são monstros sanguinários. Claro que os tubarões são perigosos e é necessário tomar cuidado quando se entra na água do mar, porém temos de levar em consideração que eles não são feras assassinas com um apetite insaciável por carne humana e, com certeza, quem assiste a tais filmes só quer se divertir um pouco e não está muito preocupado com verossimilhanças, visto que os roteiros desses filmes são de péssima qualidade. Na verdade, os tubarões é que têm motivos para temer os seres humanos que destroem o seu habitat e os caçam impiedosamente.
Também é necessário entender que ficção é ficção devido a algo que tem ocorrido muito nos últimos tempos: a problematização em cima de certos aspectos presentes nas histórias fictícias. Tem-se feito muita problematização em cima de produtos culturais dizendo-se que eles contêm mensagens subliminares de conteúdo racista, sexista e até homofóbico. Embora seja bom que prestemos atenção a esses aspectos problemáticos, convém não exagerar, ainda mais se a história em questão for comédia. Pensemos no mangá Great Teacher Onizuka, em que o protagonista, Onizuka, é professor de uma turma de alunos problemáticos. Uma de suas alunas é uma típica garota bonita e burra. A menina se chama Tomoko Nomura e todos a chamam de “lenta” a ponto de Onizuka ser o único que sai em sua defesa. Seu único talento mais evidente são seus seios avantajados ( traço comum nos mangás e animes). Se formos problematizar, iremos dizer que o mangá é sexista por reforçar o estereótipo da moça bonita com pouca inteligência. Porém, lembremos que todos sabem muito bem que não existe ninguém que seja tão estúpido, que só cometa erros e seja incapaz de fazer bem alguma coisa. Isso é apenas uma história de comédia. Um outro programa que podemos citar é o Sai de baixo, em que Marisa Orth interpretava Magda, outra mulher bonita e burra. Quem esquece o bordão “Cala a boca, Magda”, dito por seu marido sempre que ela falava uma asneira? Se formos apenas pensar nesses aspectos ditos problemáticos, acabaremos por não apreciar uma história que nos renderá boas risadas. Será que não estamos problematizando demais?
Assim como não dá para dizer que assistir a filmes violentos basta para alguém ficar violento, é preciso que entendamos que ficar o tempo todo problematizando uma história pode ficar chato. Está certo que devemos ficar atentos se uma história transmite mensagens sexistas ou racistas para não sermos consumidores passivos, no entanto é preciso relaxar e não ficar o tempo todo problematizando ou acabaremos nos tornando uns chatos.
*mangás yaoi são histórias que abordam relacionamentos entre homens e são geralmente escritas e desenhadas por mulheres e dirigidas para o público feminino. O seme (ativo) é como se fosse o homem da relação e o uke(passivo) é como se fosse a mulher.