Comparações
Cresci num ambiente onde havia entre as filhas, e entre nós e com primos e primas, muitas comparações: minhas coisas, meu sucesso, minhas realizações, as imensas frustrações, as dores, a sorte, eram enfim estimadas ou dimensionadas em relação às dos outros como num sistema classificatório.
Nesta atmosfera comparativa das relações fossem por semelhança (ou fenéticas); ou cronísticas (ou temporais) ou geográficas (espaciais), se fazia uma classificação que nunca refletia sobre os porquês, isto é, sobre as relações genealógicas (ou filogenéticas), que demandariam uma pesquisa muito mais acurada sobre os organismos aparentados. Dessa forma, as comparações que faziam, rendiam uma associação ou agrupamento que nos nivelava a partir de características banais, reducionistas, características que eram fim e não traduziam a história compartilhada. É como na Biologia, a Taxonomia e a Sistemática.
A classificação é a atividade mais exclusiva da Biologia, no entanto, a Sistemática, que é a ciência da classificação não se restringe à Taxonomia que inclui identificar, nomear , descrever novos táxons1, catalogá-los e ordená-los. A Sistemática se distingue da Taxonomia por comparar aspectos de várias naturezas procurando explicá-las em sua essência ecológica, evolutiva ou biogeográfica.
O viver comparando ou comparando-se nos leva com alta frequência a julgamentos superficiais, e eles produzem situações excludentes, que significam um sofrimento a mais em pessoas de características mais melancólicas, de personalidades mais introvertidas, quando inferiorizados por diferirem em algum ponto do que alguém resolve fazer julgamento de valor, quando a questão é que qualquer ser é parte legítima da história humana. Justamente, o objeto de trabalho da Sistemática é a diversidade biológica2, e com cuidado, podemos extrapolar esse conceito para as relações humanas com o intuito de
traçarmos um caminho que nos permita entender em plenitude a vida, a grandiosidade e a complexidade dos processos biológicos e emocionais.
Refaço então as minhas memórias, num contexto mais amplo, e luto freneticamente contra as comparações simplórias e desprovidas de análise, e desconsiderando histórias. Porque, dizemos como biólogos: a vida quer viver e foi e vai implacável, gerando padrões particulares de cada um, em resposta a cenários que se modificam ao longo dos tempos, a depender das pressões, e também, das compreensões que recebemos.
Mas, se olho minha linhagem e todos os caracteres que se sustentam ou se modificaram no tempo histórico, posso pelo menos, ver como são as pessoas de fato, conhecer-me de verdade, e com alguma coragem e no tempo que me resta, analisar essa fonte profícua para rever comportamentos, desfazer-me de atavismos 3 que não desejo, conscientizar-me de que estarei tal qual o traçado de um cladograma 4, a prever a minha própria e possível evolução.
Temos cada qual uma história imutável passada e outra passível de "mutações" no sentido figurado, e, para o bem ou para mal, há um Blauplan5 de nós, histórico, que assim é, e também uma paisagem de perspectivas onde esse autoconhecimento deverá valer alguma coisa.
Nosso espectro de valores precisa passar por uma mudança radical de olhar para o outro, seja o outro quem for. É essa a mudança que nos permitirá tratar de qualquer categoria biológica considerando a" imensa diversidade que chega na ordem de 100 quatrilhões de pontos numa matriz de caracteres versus táxons, sendo essa a base de dados de que a Biologia Comparada trata"6.
A Biologia, por preocupar-se com a vida em tantos aspectos, que nos obriga a nos especializarmos, me deu elementos que me permitiram revolucionar a percepção de minha própria vida na Terra, bem como, de questões biológicas com uso indevido por sistemas discriminatórios. Obviamente o convívio com os problemas sociais, políticos, morais da época de estudante, nos gloriosos anos 70-80 foram significativos para estimular a reflexão, o livre pensar, o ligar as ideias. Essa é a oportunidade que as universidades nos dão.
Se o estímulo para pensar vem desde a infância e comumente ele ocorre nas escolas, num crescendo, iremos nos tornar um povo que não veio ao mundo à passeio, ou para acumular riqueza e status, mas sim, porque gosta e sente prazer em cultivar e divulgar o conhecimento alcançado. O conhecimento não exclui ninguém, porque como Charles Darwin demonstrou, somos todos descendentes de um antepassado comum 7. O homem que não ignora este fato da história biológica, deverá ser alguém que promove a vida em todas as suas formas. E isso é belo e bom.
1. Táxon (plural: táxons ou taxa): qualquer classe cujos elementos sejam organismos biológicos e cuja definição seja algum tipo de semelhança compartilhada por eles (Amorim 1997)
2. Diversidade Biológica ( ou Biodiversidade): a variedade de organismos considerada em todos os níveis, desde variações genéticas dentro de uma mesma espécie ou dentro de níveis taxonômicos superiores como, gêneros, famílias e outros, bem como, inclui ainda, a variedade de ecossistemas que abrange tanto comunidades de organismos em um ou mais habitats, quanto as condições físicas sob as quais eles vivem. (Wilson 1992)
3.Atavismo: Em Biologia, a reaparição em um descendente de caracteres de um ascendente remoto e que permaneceram latentes por várias gerações. Em sentido figurado a hereditariedade biológica de características psicológicas, intelectuais, comportamentais.
4. Cladograma: importante ferramenta gráfica utilizada em estudos filogenéticos, representa as relações evolutivas entre diferentes grupos de organismos. O cladograma trata de grupos monofiléticos, ou seja, que tenham espécies que possuam um ancestral comum e novidades evolutivas presentes apenas neste grupo.
5. Bauplan: palavra de origem alemã que significa plano básico ou projeto introduzida em 1945 pelo embriologista e filósofo Joseph Henry Woodger, para representar a arquitetura corporal de um animal, bauplan significa o conjunto das características anatômicas que caracterizam um táxon monofilético.
6. Livro: Fundamentos de Sistemática Filogenética. Dalton de Souza Amorim 1997 . Holos. 2002
7.Antepassado comum: se refere aqui aos seres primitivos, tais como as bactérias, algas e microrganismos, os primeiros seres vivos a surgirem no planeta Terra e que deram origem à todas as outras formas de vida.
Abraço o amigo e colega zoológo Francisco de Assis Ganeo de Mello Assis, do Instituto de Biociências da Unesp- Campus de Botucatu, que desenvolve pesquisa em sistemática e evolução de insetos e é autor de uma apostila excelente sobre "Conceitos gerais da Taxonomia. É também poeta, e se atreve como ele mesmo diz de si, na fotografa e na pintura. Blog Coisas do Chico (http://coisasdochico.blogspot.com).
Confiram:
https://fapesp.br/biota/: Lançado em março de 1999, o objetivo do Programa FAPESP de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Restauração e Uso Sustentável da Biodiversidade (BIOTA-FAPESP) é conhecer, mapear e analisar a biodiversidade do Estado de São Paulo, incluindo a fauna, a flora e os microrganismos, mas, também, avaliar as possibilidades de exploração sustentável de plantas ou de animais com potencial econômico e subsidiar a formulação de políticas de conservação dos remanescentes florestais.