Psicose: A vida na república imita a arte

Psicose

Filmes de terror me apavoram e sigo sem optar por assisti-los desde sempre. A minha aversão pelo estilo vem do fato que para mim são cenários feios e não costumo aprender nada quando estou apavorada. Meu medo não vem de caras feias, mas sim, de situações perigosas e ameaçadoras para uma pessoa ou pessoas que estão vulneráveis.

Era 1978, naquela noite tomava meu banho, porta aberta como era o trato na “república” porque banheiro único para todas. Era também uma noite especial, aproximava-se nossa formatura e já dispúnhamos da beca para o grande dia.

Três dias tinham se passado, três dias de insônia, pesadelos, inconformismo com a situação absolutamente incômoda, agressiva, desconcertante que Hitchcock apresentou no filme Psicose! Sinceramente, nem conseguia entrar no clima que a chegada da beca anunciava!

Como ocorre com quem é capaz de se apavorar, os pensamentos estavam à toda, a realidade do barulho das conversas na casa querendo se impor meio sem sucesso, e eu ali, de pé sob o chuveirão jorrando água desde a cabeça, a cortina de florezinhas cor de rosa desbotado fechada para impedir a inundação do banheiro, e de repente, alguém escancara a porta, eu disse “oi, acende a luz”, mas a luz estava acesa, e numa sequencia de surpreender até a mais desligada das pessoas, no caso, eu, perdida em meus pensamentos, a luz que estava acesa se apaga, a cortina é bruscamente aberta, e uma mulher de preto, com o rosto coberto de branco, e uma faca na boca, acende a luz, e empunha o objeto em minha direção, e faz aquele som da cena clássica do esfaqueamento de Marion Crane.

À cena tão bem interpretada, com requintes de produção, pela colega L.*, seguiu-se o meu desmaio, nua, despencando na banheira. Acordei ainda dentro da banheira, com as biomédicas me animando, e uma polêmica do exagero ou sarro daquela brincadeira.

*L. era de Santos. Minhonzinha, olhos inquietos, esperta e calma ao mesmo tempo, uma ótima companheira. Vestiu a beca que inclusive ficou toda molhada, colocou um creme facial como máscara rodeando os olhos, armou-se de um facão, sendo além de protagonista, iluminadora. Quantas de nós deveríamos ter feito teatro?

Recusei-me a discutir sobre a quase fatalidade, porque minha colega já se sentia suficientemente culpada pelo ocorrido. Alguns anos depois recebi e guardo um cartão postal que ela me enviou. Tornou-se uma história e tanto!

Outro filme, Vozes do Além, e irmãs.

Havia tido também em minha infância uma cena meio parecida, envolvendo os mesmos elementos da cena acima descrita: um filme de terror B&P, assistido por meninas que gostavam de assustar quem demonstrava pavor: minhas irmãs, eu a assustada, e o filme “Vozes do Além” que desafiava as leis da Física, e fazia um telefone arrancado da parede tocar “normalmente” e iniciar diálogo com a protagonista apavorada. Ao irmos para cama, após a escadaria havia uma mesinha com os santos da mamãe e velas acesas. de Novo a luz estava acesa e eu expressando meu pavor e pedindo que não me assustassem, acho que apaguei a luz. Talvez tenha sido interpretado como topar a brincadeira, e ao ouvir a repetição do chamado do além, cai de costas e rolei na escadaria do sobrado. Era um quarto grande com três camas paralelas para as três Marias. Uma noite vi a cama da primeira com somente o cabelo visível, o corpo e o rosto cobertos sob os lençóis. Perguntei à outra irmã na terceira cama: "ela já dormiu?" A resposta foi afirmativa peguei um gibi e me deitei achando um pouquinho estranho o corpo muito imóvel da primeira. Passados alguns minutos, entra a minha irmão quarto adentro, e eu olho para a cama do corpo imóvel e digo em desespero: "se você está aí, quem é essa na cama ao ladoooooo!", e grito a plenos pulmões "socorro, socorro", e as duas vão pra cima de mim, me agarrando e eu gritando, e minha mãe vem do quarto e a bronca se distribui para as três, como sempre. Digamos que eu vivia sempre a expectativa do próximo susto, e faria qualquer coisa para entrar na turma, mas que!

Universidades e integração de áreas para formação humana

Fui assistir teatro, cinema, música e dança no dia a dia da universidade quando cursei uma especialização em minha área biológica na Universidade Federal de São Carlos em 1980. As Universidades que incluem disciplinas ou cursos na área de Humanas são completamente distintas das que oferecem as áreas de biológicas, caso da minha experiência. Fez e deve fazer muita falta para a formação completa de qualquer profissional. Senti uma alegria imensa em várias Universidades não isoladas, quando andava nos corredores e dezenas de cartazes disputavam as paredes convidando para atividades de formação em comportamento humano, sociedade e fenômenos sociais, política. Creio que o melhor da ideia de Universidade é ser um centro de educação que congrega várias áreas de conhecimento, no entanto, me arrisco a dizer que as Humanas ficam bem sempre, mas, Biológicas e Exatas sem Humanas, determinam que os estudantes se virem, caminhem sozinhos.

Escola Nacional Florestan Fernandes.

Como os espaços de saber saíram das praças públicas desde a Idade Média para se tornarem fechados em universidades, nos resta alimentá-las com todos os saberes e experiências possíveis, ou, fazermos um caminho "de volta às praças públicas ", trocando ensinamentos, pois cada pessoa ao longo da vida acumula saberes e isso pode ser muito rico. Um exemplo disso é a Escola Nacional Florestan Fernandes, faculdade comunitária, que através de parcerias com universidades públicas, sindicatos e movimentos sociais, completou neste janeiro de 2022, dezessete anos, e desde a inauguração, formou 40 mil brasileiros e alunos de outros países através dos 20 cursos que oferecem. *

Universidades e comunidade juntas, não pode mais ser um sonho, tem que se tornar a nossa realidade.

Educação, direito de todos-as

É importante que as "questões do Brasil" sejam tratadas por todos-as da comunidade, porém, não como ocorreu quando da criação da USP, cujo projeto foi influenciado pelas ideologias das classes mais abastadas e amparada pela mídia da época, conforme revelado pela tese da estudiosa Priscila Elisabete da Silva ( 2015), da faculdade de Educação da própria USP **.

Se formos pelo mais básico, a educação passou a ser o direito de todos a partir da Constituição de 1988, sendo que antes disso o ensino público era tratado como uma assistência, um amparo e atendia a poucos. Com educação cada brasileiro-a pode ter maior participação intelectual na sociedade, e vislumbrar uma vida livre da pobreza por meio da qualificação para o trabalho. Se isso se der no acesso ao terceiro grau, concretizaremos um sonho que começou nos governos Lula e Dilma e que concretizará um projeto de nação verdadeiramente livre e soberana. Também o ensino obrigatório de línguas além do inglês, deveriam ser pensadas. O espanhol, por exemplo, nos conectaria com a America Latina, nosos vizinhos, e com quem teremos certamente cada vez mais relações políticas, etc.

* Escola Nacional Florestan Fernandes: http://amigosenff.org.br/

**Tese revela que o projeto de criação da USP foi pensado em termos raciais. Aun USP - Ano:49 - Edição No. 112 -Educação. 21/09/2016, por Larissa Lopes. Disponível em: http://www.usp.br/aunantigo/exibir?id=7893