Santos e Silvas
A música “Dias de Santos e Silvas”, de Gonzaguinha, é um belo ponto de partida para refletir sobre o direito ao bem-estar social e o direito às cidades, negado aos diversos Santos e Silvas espalhados pelas periferias e favelas, entre Marias e Joanas, mães solteiras e pretas.
O art. 182 da Constituição Federal de 1988 garante o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e o bem-estar de seus habitantes, mas quando a noite desce sobre as cidades, quem está nas filas entre o suor e o cansaço não vive esse mundo poético e literário dos privilégios que poucos usufruem.
Feitores foram substituídos por gerentes, fazendeiros por grandes empresários, comida escassa por um salário que mal dá para viver, senzalas por barracos e chicotes pelo assédio moral. Assim, o trabalhador move a roda do sistema levantando cedo, apenas engolindo o café e tomando a condução lotada que anda e pára, pára e anda. Uma das frases que mais se espalha pelo Brasil adentro é: “Faiz trêis mêis que tô lutano para marcar um exame, mais a médica só aparece no posto quando quer! A atendente diz que não tem vaga”.
Alguém, por favor, convença ao povo (entre Santos e Silvas, Marias e Joanas) que ele tem direito ao bem-estar que lhe é negado diariamente.
Dona Zefa desconhece que tem direito de discutir as políticas públicas na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano. Ela só sabe que já foi três vezes reclamar com o secretário de obras para que tapasse o buraco de frente da sua casa e providenciasse limpar o terreno vizinho (que pertence a um especulador que nunca foi lá), de onde saem ratos e escorpiões que infestam a sua casa. O aluguel lhe custa os “olhos da cara”, pois o proprietário já aumentou o valor duas vezes, de um ano para cá.
Tem também Manoel Soldador, “consertador” de panelas velhas, que teve que se virar quando foi demitido após a reforma trabalhista, o patrão não pagou a rescisão e o advogado cobrou muito caro para entrar com uma ação. Ele achou melhor deixar de lado e abrir o próprio negócio na sala de seu barraco. Logo vieram os fiscais do setor de tributos cobrando alvará e o recolhimento do ISS, só para Manoel consertar as panelas furadas de quem lhe procurasse.
- Que diabo de lei é essa? Gritou Manoel, após a saída dos fiscais!
- Mal ganho para manter a fome que me consome!
Ao mesmo tempo que a lei traz o mundo do “dever ser” poético em seu texto, o Estado garante a paz social burguesa enquanto segrega e exclui as minorias. O grupo musical Quinteto Violado cantou: "Se o que nos consome fosse apenas fome, cantaria o pão"! Então eu penso: quem sabe a vida não mude se no jogo do bicho der avestruz na cabeça...