Sobre dons, deuses e sorte

Um amigo cinéfilo, que vou chamar aqui de M* (para preservar sua identidade), enviou-me por WhatsApp uma mensagem onde, num trecho que reproduzo aqui, faz um comentário sobre um morador de rua, nosso conhecido. Minha resposta a ele foi este texto:

SOBRE DONS, DEUSES E SORTE

"Erga as duas mãos para o céu, independente de ter ou não uma seita religiosa. Agradeça o que tem, sua saúde, patrimônio, etc. Tem muitos que nem têm mais pátria." (M*)

A exortação que faz é coerente, mas ingênua, por estar contaminada pela crendice. Erguer as mãos para o céu?

Ao falar sobre os que "nem têm mais pátria", acredito estar referindo-se ao T*. Vamos lá, falemos dele.

Numa sessão do Cine Cultura (segmento da Secretaria da Cultura da Prefeitura Municipal de Marília), T* fez à palestrante, que comentava o filme a que iríamos assistir, uma observação bem articulada e pertinente. Por esse incidente e ver nele um apreciador do bom cinema (uma das qualidades que determinam a inteligência emocional superior de uma pessoa, no meu entender), não duvidei muito quando, numa rara conversa a dois, ele me disse que já trabalhara na Rede Globo. O que ele não me explicou foi o motivo de ter decaído tanto na vida, a ponto de tornar-se um morador de rua e pedinte, perambulando pelas ruas com um enorme saco, este contendo os pertences que lhe restaram da sua vida pregressa.

Foram os deuses, ou a sorte, os responsáveis pelo que lhe aconteceu (como você parece estar deduzindo com a sua ingênua exortação)?

Vou argumentar que parece que não.

Vou iniciar lembrando-me do filósofo Mário Sérgio Cortella falando num certo vídeo. Ele disse que ficou bem irritado quando, um dia, lhe afirmaram: "Cortella, você tem o dom da palavra!" Achavam então que este dom lhe fora dado pela natureza, ou pela sorte? E todo o estudo e esforço que ele empreendeu para chegar onde chegou? O mérito dele não conta?

Os deuses (se é que existem) ou a sorte (supostamente injusta) só ajudam os que se esforçam para serem bons naquilo que fazem. A boa sorte pode fazê-lo nascer no Palácio de Buckingham ou a má sorte pode fazê-lo nascer numa favela insalubre. Porém, no Palácio de Buckingham você pode tornar-se o infeliz príncipe britânico Andrew, segundo filho da rainha Elisabeth II. É suspeito hoje de ter-se envolvido criminalmente com o amigo e bilionário americano Jeffrey Epstein, que se suicidou na cadeia após ser condenado por abuso sexual de menores. A boa sorte de ter nascido no Palácio de Buckingham de nada lhe adiantou (a sua sorte virou da boa para a má sorte, como a do seu amigo bilionário). Você pode nascer numa favela qualquer (suposta má sorte) e treinar todos os dias para tornar-se um futebolista vitorioso como o Lionel Messi (que, de fato, segundo sua biografia, foi o que lhe aconteceu). Virou o jogo da má para a boa sorte. Então você não deve bendizer a sua boa sorte ou maldizer a sua má sorte. As coisas sempre podem virar, contra você ou a seu favor, dependendo da forma como se conduz na vida. Por isso, o que você é hoje deve-se exclusivamente a você mesmo. Deuses e sorte nada têm a ver com isso.

Não vou ser tão pernóstico a ponto de achar que tudo que sou hoje deve-se somente ao meu próprio mérito. Talvez tenha que agradecer, sim, a alguma coisa. Mas, se tenho que agradecer à sorte como partícipe da minha formação, é por ela ter colocado à minha frente verdadeiros mestres do passado e do presente (poucos religiosos), a quem, evidentemente, também devo externar agradecimentos. Sócrates, Platão, Michel de Montaigne, Santo Agostinho, René Descartes, Friedrich Nietzsche, Arthur Schopenhauer, Immanuel Kant, David Hume, Bertrand Russell, Karl Popper, Hannah Arendt, Alain de Botton, Hélio Schwartsman (filósofos), Gustave Le Bon, Steven Pinker (psicólogos), Charles Darwin, Richard Dawkins (biólogos), Sigmund Freud, Contardo Calligaris (psicanalistas), Monteiro Lobato, Guy de Maupassant, Vitor Hugo, Jane Austen, John Steinbeck, Somerset Maugham, Marcel Proust, Rubem Alves, Alice Munro (escritores), John Ford, Cecil B. de Mille, Alfred Hitchcock, Charles Chaplin, Federico Fellini, Alain Resnais, Yasujiro Ozu, Kenji Mizoguchi, Akira Kurozawa, David Lean, Brian de Palma, Mike Leigh (cineastas) são os mestres que me marcaram até agora. É claro que estarão no mesmo nível outros com quem não tive a sorte de me deparar ou com quem talvez ainda me depare na vida.

Entretanto, apesar de guardar distância em relação às religiões (mormente às que chamo "dizimistas", voltadas para enriquecer seus pastores, e às fundamentalistas, voltadas para fanatizar seus seguidores), sendo eclético e admirador das boas ficções, como deixei claro na minha dissertação do mestrado em filosofia, reconheço na Bíblia alguns pontos positivos. Há nela, ao lado das bobagens mirabolantes, algumas histórias inspiradoras e parábolas geniais, como a do bom samaritano (cuja mensagem, a propósito, é difícil de ser aceita por um religioso mais empedernido).

Com todo esse suporte cultural, formei um sólido "background moral" que me orienta e me sustenta em todos os momentos, seja nos triviais, seja nos complicados (como nos dilemas morais). É "erguendo as mãos" não a um céu vazio, mas a esse "background moral", uma espécie de escudo moral exclusivamente meu, que estarei agradecendo a quem efetivamente me irá socorrer nos momentos difíceis.

Qualquer um de nós, seja um Mário Sérgio Cortella, seja um T* da vida, é o próprio responsável pelo que é hoje (não devido a um dom, aos deuses ou à sorte).

* Nomes reais omitidos, para preservação das identidades.

Paulo Tadao Nagata
Enviado por Paulo Tadao Nagata em 28/09/2021
Reeditado em 13/01/2023
Código do texto: T7352366
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