Da crueldade à alma
A crueldade é o vinho da alma; há na compaixão e no sacrifício do mártir muito daquela arcaica crueldade animal. O homem se desenvolveu através da crueldade, assim chegamos à paz em sociedade; não foi um contrato. Nada nos custou tão caro quanto essa paz, esse bem comum. Essa crueldade se voltou para dentro de si, uma vez que não podia mais se exteriorizar, o homem se dilacerava dentro si mesmo, se debatia contra as jaulas da cruel sociedade que nascia; ele tinha de se reunir, foi a necessidade, semelhante aos animais aquáticos que tiveram de se adaptar à terra, que da noite pro dia um peso esmagador caiu sobre os homens. Os mais poderosos, as bestas louras, os tiranos que fundaram as leis sobre uma massa informe e errante de seres ainda rastejantes e entregues aos seus instintos. Depois de muita dor, sacrifícios e castigos cruentos nasceu a "alma", o homem interior, doente de si, culpado, pecador, envergonhado de seus instintos. Mas como? Ele tinha de direcionar esse impulso cruel para algum lugar - voltou-se contra si. Nasceu a má-consciência, a planta mais interessante sobre a terra. Não fosse isso ainda seríamos feras, ainda que sejamos feras, o mundo não teria profundidade. Somos falsos, necessitamos da falsidade, somos artistas, não por oposição ao verdadeiro, e sim porque não podemos viver sem falsificar o caráter cruel da vida. Sejamos honestos até esse ponto: " temos a arte para não morrer da verdade "