O espelho d'água.

[...] quero fugir e mergulhar no mar e ver tudo dando certo.

Quero que esse dia chegue, e o mais rápido possivel, já quis gritar, me deixar enlouquecer, me deixar vencer, mas não posso, me recuso a cair aqui, a fracassar agora, logo agora que estou tão perto da terra firme, tão perto de sair do mar onde naufraguei, onde me perdi e me achei, mar esse que me ensinou muito, que foi por muito tempo, lugar que amaldiçoei, lugar que quase me afoguei, que vi no escuro da água, o reflexo do que me apavorou, me perseguiu em sonhos e pesadelos, encontrei lá um monstro, que sempre temi, um que pensei ser minha ruína, um monstro que estava preso lá e que quase deixei me afogar, monstro esse que estava preso em um reflexo, o meu reflexo.

Fugi dele por anos, em desespero e agonia, com medo de me afogar, de submergir e encontra-lo, até que aceitei, não me rendi mas aceitei que o que quer que ele fosse era meu, criação minha, e que eu o merecia e fugir apenas prolongaria o meu sofrimento, já que ali apenas havia o mar negro e sem ondas coberto por uma noite sem estrelas, sem horizonte ou norte, então decidi mergulhar, não havia nada a perder ou a ganhar, nadei pelo que pareceu ser uma vida.

A água era escura e fria e no fim coberta por uma camada de areia, eu entrei, e encontrei, o monstro, era diferente do que imaginei, ele era eu, tão confuso e perdido quanto eu e tão desesperado que me pediu ajuda, eu fiquei tão confusa, nós ficamos, eu e o monstro de mim mesma.

E foi ai que entendi, que aceitei, aceitei tudo o que me havia acontecido e entendi, tudo que havia por trás das ações monstruosas em mim mesma e vi então a água descer, como se por um ralo, parou em minha cintura, tão límpida que via os dedos em meus pés, o céu tinha uma coloração tifany e profunda e a minha frente havia um espelho, onde o monstro estava olhando pra mim, submerso com os cabelos ondulando para cima e a mão esticada em minha direção, eu retribui o gesto e para minha surpresa a minha mão passou pelo que parecia água, e quando segurei sua mão o espelho se desfez como uma bolha de água bem na minha frente, e tomou uma outra forma, o monstro, que se assemelhava a um humanoide de porcelana trincada, agora era uma menina, de pele morena e seios fartos, num vestido de seda branco, os cabelos eram longos e brilhantes e foi com um abraço embalado num sorriso que senti ela começar a fazer parte de mim, logo que encostou sua testa na minha e se desfez, deixando só uma sensação calorosa em meu peito.

O monstro havia sumido e a dor, a solidão, a tristeza também, foi quando viramos uma só que a ânsia de reconhecimento sumiu e o que vi a minha frente foi a terra firme que estava abaixo de meus pés se edificar em arvoredos e um sol radiante e soube que era ali que eu, que nós deveríamos ter estado esse tempo todo.

E agora que estou a um passo de chegar, não vou desistir, não sei ao certo o que vou encontrar lá, mas sei que é a direção que devo correr, e não vou parar, até alcançar por que agora eu sei que mereço estar lá.

Sei que esse dia vai chegar, e talvez esteja lá para ver, mas se não prometo lhe contar exatamente como foi, afinal é sempre pra você que conto minhas realizações e essa vai ser com certeza a maior delas.

Desejo-lhe todo bem e toda felicidades cabíveis a essa vida.

Mais essa carta.

Datada de 10.06.2018

Ouvindo Jorge Vercilo - Que nem maré.