sobre encontrar você (e perder o medo de perder, o medo do medo)

     O calor de verão excedia os próprios limites e a chuva era chamada com um ímpar clamor, logo, quando as nuvens cor de chumbo encobriram o sol e as rajadas de vento sopravam, balançando as janelas, os varais, bagunçavam os cabelos e as luzes do poste se acendiam uma por uma, meu olhar perscrutava o horizonte, em pensamento eu dialogava com Deus.

     Os salmos entoados me mantinham de pé e não esmorecer era o lema daquele ano ainda no início, ainda incerto, ainda repercutindo o caos de três infernos de 365 dias cada, infernos sobrevividos a duras penas, à custa de muitas renúncias, muitos sonhos deixados para trás, muita vida que se perdeu enquanto eu lutava para não ser engolida pelo redemoinho de raiva, autopiedade e rejeição. E estar aqui, a observar pela janela a primeira chuva do ano, era uma vitória sem precedentes. Era doloroso, mas reconfortante ao mesmo tempo.

     Os primeiros pingos de chuva caíram e eu abri a janela para receber então o novo ano e todas as bênçãos que viriam, ainda que certas feridas não estivessem fechadas e ainda custassem muito a serem cicatrizes porque no dia em que fossem eu as teria em alta conta por contarem a minha história sem a necessidade de tantos parágrafos. O fato, o aprendizado e uma ilustração dele para sintetizar, sem mais delongas.

     Nada era além de princípio, um princípio que buscava se ajustar ao contraste de acasos que construíam aquele encontro de meus olhos com os seus. A história precisava de um parágrafo inicial para se desenrolar e esse foi um excelente ponto de partida.

     Haveria de nascer então... um amor.

     Hoje ele é aquela árvore na qual me sento debaixo quando quero sombra e um pouco de sossego, onde quero gravar nos troncos duas iniciais, a minha e a sua, para que nem as marcas do tempo apaguem a sua passagem por essa pacata vida. Porque eu não posso simplesmente enterrar essa parte da minha história sem mais nem menos e se o início foi delimitado pela ambientação, o ponto final não foi colocado, posto que as reticências salientaram que numa esquina qualquer haveríamos (ou haveremos) de nos reencontrar. Ou encontrar. Encontrar aquilo que não foi possível antes. Algo que nem mesmo eu poderia saber que me fazia tanta falta. Encontrar nos seus olhos o brilho do sol, da poesia que existe nos livros e nas músicas, mas na realidade é um muro tristonho e abandonado, por onde as pessoas passam e ignoram a existência.

     E seria então uma confirmação naquela abafada manhã em que um pensamento muito claro rondou a mente?      Seria já o amor a se fazer notar, insistente? Seria ele o desafiador do medo, um contraponto a uma realidade desajustada? Seria também o responsável por fazer as perguntas mais tabus e enterradas num passado muito distante? Seria ele a cura para o medo do medo?

     Porque afastar o pensamento nem sempre é eficaz, ele volta com mais força, porque para ser pensamento, impressionou-se. O medo aprumou-se, ultrajado. No íntimo era certo que a sementinha que crescia tão solene era amor. Porque sempre foi. E a luta, sem sucesso desde os primórdios, a confissão mais sincera.

     "Eu já te conhecia antes de conhecer..."

     Explicações seriam enfadonhas e apenas quem já experimentou essa sensação me leria sem emitir julgamentos. Um vislumbre do seu olhar e o estalo que despertou-me do piloto automático: você já esteve aqui antes e o advérbio não se referia ao dia anterior, sentenciava um tempo muito, muito, mas muito distante, vívido ao mais simplório estímulo... porque poderia ser banal eu te olhar, seguir caminho e ser indiferente, porque ao decorrer da vida vemos muitas pessoas e seus rostos são borrões no vaivém de uma rotina maçante.

     Você esteve aqui antes, bem antes de eu me dar conta, de me entender como pessoa, de me transformar em mulher, antes de eu me dar conta de que fugir do sentimento seria uma tolice, antes de declarar rendição, antes do medo do medo assombrar aquele presente do destino... antes de tudo, você já era você e eu já era eu, em algum canto desse universo nós fomos "nós".

     Sete meses de altos e baixos, duelos travados, sete meses de vontades caladas, de dedos dos pés sentindo as ondas quebrarem na beirada, sete meses de ponderação, se sim ou não, quando era sim e cada átomo do meu corpo gritava no silêncio da noite, as pontas dos dedos inquietavam-se no bloco de notas porque uma vez ditas, as palavras não seriam mais minhas e sim do universo, seriam aquele eu lírico que se refere ao mundo e nunca ao próprio mundo, um mundo repleto de possibilidades desperto pelas perguntas mais tabus.

     Os caminhos levavam para muito longe da zona de conforto e para uma pessoa resistente a mudanças é bastante assustador ser arrancada do casco para abraçar uma miragem... porque o entendimento convida ao amadurecimento e esse processo é íntimo, repleto de armadilhas, por isso a insistência para que se haja complacência consigo mesma, um passo num dia atribulado é uma vitória, o ritmo pouco importa, desde que a vontade de caminhar supere todos os entraves.

     O sol estava encoberto pelas pesadas nuvens de outono, as folhas já haviam sido varridas da calçada, as árvores de galhos frágeis oravam para suportar o inverno que estava por vir... e por um momento senti o coração parar.

     Nunca foi um adeus, embora ainda seja muito difícil encarar os dias vindouros e eu encontre conforto nas lembranças de um tempo conjugado no pretérito, buscando minuciosamente nesses dias todos um indício de que o medo do medo foi o meu rival, pior que uma terceira pessoa entre nós, pior do que as brigas, pior até do que a maior das distâncias...

     Enquanto olho pela janela e faço capturas para me concentrar no hoje, no que tenho como certo mesmo sem me sentir de verdade em casa, espero mais do que uma nova oportunidade, mas compreender de onde vem o medo do medo e de que forma vencê-lo, porque o medo do medo afasta a felicidade num estalar de dedos, com a mesma potência de um olhar invejoso, tão poderoso quanto os efeitos nocivos de um falso testemunho... quem vive o terror do medo de ter medo haverá de menear a cabeça e concordar que o medo de perder desconcentra a mente de viver o que se apresenta porque se sentir tristeza faz parte de embarcar na roda da vida, a alegria também faz e é merecida, também é bem-vinda, ensina com ternura para que na maioria das vezes não seja necessário sofrer para valorizar e aprender.

     "é saudade que chama?"

     Saudade é um eufemismo... a ausência abalou tanto as estruturas que me soa utópico fazer a imagem mental de um futuro (talvez não tão) distante no qual essa dor seja apenas um sonho ruim. Porque ainda é um pesadelo contar os dias e ser um a mais sem você, sem a doçura do seu olhar, porque - na ausência do toque - a sua voz era uma das minhas músicas favoritas, aquele timbre doce que me abraçava de longe e me embalava para que naquelas noites o sono me encontrasse e debaixo da fronha do travesseiro me preenchesse com os mais doces sonhos e, se possível, agora eu queria encontrá-los, a minha porção de magia nesse mundo repleto de desesperança, cores pálidas e histórias inacabadas, gostaria de reencontrar os sonhos, a força para voltar a lutar por eles e ter do universo algum sinal para não desistir de te encontrar... de encontrar no brilho dos seus olhos o sol da manhã e o caminho de casa.

     A saudade resume em sete letras um sentimento muito mais abrangente e doloroso, sintetiza a dor em pouco espaço, entretanto, a lembrança da tarde de verão em que os olhos miravam a primeira chuva do ano me pede com a insistência de uma criança para que eu nunca perca a esperança porque mesmo quando não se vê saída, ela existe, e existe uma segunda chance, um novo atalho, existe muito mais escondido, existe para quem não desiste, para quem suporta as noites mais escuras... e existe porque faz parte de estar na roda da vida. Embarcamos, desembarcamos, nunca sem propósito, jamais... porque assim como os pássaros sempre voam para casa quando o sol se põe, cedo ou tarde encontramos nosso lar.

Marisol Luz (Mary)
Enviado por Marisol Luz (Mary) em 12/07/2021
Reeditado em 08/01/2022
Código do texto: T7298264
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