LEITURA DINÂMICA DO NIILISMO EUROPEU & FRAGMENTOS COM-SEM-SENTIDO-E-SENTIMENTO
Anotações primeiramente publicadas em 9 de março de 2008.
Levemente editadas hoje, 23 de junho de 2021.
O “niilismo supremo” nasce quando o desligamento esquizofrênico da realidade hiper-complexa onde não somos nem significamos nada perante o todo refinado, que cria um mundo-verdade para si, também já não serve mais ao indivíduo, pois seu engodo não pode auto-enganar-se. Há a auto-conscientização (pelo conhecimento acumulado, fica impossível de desmentir) de que a pessoa só tenta se criar um embuste, para fugir do que julga inatingível, inadequado ou apenas outro embuste, de modo que o embuste do embuste ou o embuste no embuste não vai funcionar. Retorna-se a uma concepção de realidade única, que porém não pode dar nenhuma sustância ao ser. Ele já quer abdicar. O ser já não é ser. Só não se mata (no coletivo, como ato socialmente relevante para pôr em perigo o espécime homem).
Porém sabe Nietzsche: o niilismo é a crise da razão. A perda de parâmetros tais quais finalidade, unidade e ser. Não significa que, sem estes signos, não possa ser encontrado o “sentido” (ou equivalente, sem a linguagem) válido para o dilema existencial. Significa apenas a abnegação prevista do Idealismo, do abstrato, do convencionado, bordado por Nietzsche em seu tempo. A perda de confiança no método hegel-kantiano da separação pensamento-vida. Com uma nova fusão de ambos, a ético-estetização, haveria o Dioniso, haveria a dança, haveria o eterno retorno e o fim resultante desse meio.
O niilismo é o limite, é o tangível, do homem atual. Como negação de tudo, é a negação, é a consideração antitética, da moral. Porém a síntese fica de outro lado. Outro lado que não pode ser debatido aqui, neste paradigma, nesse sistema de valores. Porque há que se acometer (o ser humano) da transmutação ou transvaloração primeiro. O niilismo não passa de resposta ainda ligada à razão, à lógica, às tradições, à moral, do próprio abismo moral. A constatação da falta de sentido e a vontade de findar-se e querer fugir irrestritamente só pode ser explicada pelo desnorteamento provocado pela descrença na moral. Se por um lado ela não serve mais, não se descobrindo um substituto tampouco sua falta pode servir, porque a falta lembra a presença, e na verdade a antítese ainda é muito a tese. É uma “derivação normal” do estado racional/moderno o que aqui se passa, Nietzsche subtitulou. Uma condição previsível. E o além-fronteira? O que se pode falar de uma transmutação previamente à transmutação? Zaratustra é o raio-enunciador. O que dizer do super-homem? Ele não pode aparecer, na teoria, em forma direta? A teoria implicaria a possibilidade de seu surgimento prático, posto que não se está falando de nenhuma doutrina revolucionária nos termos da velha práxis de Marx. Para a transmutação deveria ser criada uma nova palavra. Ou melhor: para o fenômeno a que Nietzsche deu o nome de transmutação, ainda mais inadequado seria nomeá-lo revolução, até pelo histórico da desilusão que envolve a palavra, que permite rapidamente evocações niilistas a respeito da própria palavra, que permite constatar que qualquer ação revolucionária é natimorta, é em vão. Como revela Zaratustra, seus discípulos, sendo outros Zaratustras, não podem ser discípulos. Porque o aluno que sempre se mantiver aluno não superará o mestre. O super-homem deveria ser a super-super-ação de Zaratustra. E não há nada descrito que se pareça com esse “filho do filho” (nós somos filhos de Zaratustra). Por tabela, aplicando-se-o aqui, não podemos ter idéia do... devir que devirá. É consolo suficiente o eterno regresso? Não consistirá ele noutra solução transvalorada? A edificação de novos valores, se momentaneamente tão turva, significa que está ainda distante. Para nós o eterno retorno ainda é niilismo e lógica niilista. Nada se pode dizer a respeito. A vida deve ser vivida, e o eterno retorno é de qualquer forma uma espécie de caminho...
A espera – jamais passiva – pelo super-homem não se pode tornar a espera pela ressurreição de Jesus Cristo, simbolicamente. Por mais que as conseqüências fossem diferentes (e as primeiras legitimamente imprevisíveis desde que existe uma historiografia da civilização), o processo de chegada adquire contornos por demais parecidos se se lê Nietzsche errado e se ao invés da dilapidação da moral ocidental efetua-se unicamente uma transferência de crença/esperança (algo totalmente moral, totalmente inscrito na moral vigente, que, se não é sinônimo de niilismo em si, é no mínimo a senha para tal). Ainda nos encontramos na margem do prólogo, de dois séculos após o XIX. No entanto, não é este prazo arbitrário que me preocupa: trata-se das tentativas e consumações das tentativas. Afinal, o que são elas? Já começaram nalgum lugar? Ou já cessaram? O pior não é findar o prazo estabelecido por Nietzsche, mas um esgotamento, uma exaustão, até mesmo na etapa em que se deveriam galgar os esboços de um super-homem, “o transmutado”. Uma barreira que, a julgar pela opinião do autor em relação aos alemães, tende à intransponibilidade. O verdadeiro prazo é a disposição de encará-lo. Portanto, podem se tratar de términos sem um começo.
A moral é em última instância, pela sua supressão necessária, a vontade de inexistência.
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“Se a existência tendesse a um fim, esse fim já teria sido atingido”
O Deus moral já foi morto; mas e um deus além do bem e do mal?
Extinguir a moral, protetora dos fracos por excelência, seria reaver a vontade de potência.
Extinguir a moral também extinguiria o niilismo, que é um sintoma de decadência.
Para o niilista desesperado, o eterno retorno não passa de um malogro perpétuo indizível. O eterno retorno só é adequado aos preparados para ele. Para a suportação da dor (o Cristianismo seria exatamente o pavor de qualquer dor, a vontade de não tocar em nada e de não ser tocado). O homem verdadeiramente virtuoso, o super-homem, não-homem, acolheria aprazivelmente a eternidade dentro da existência mortal.
Uma das causas do niilismo é a ausência desta raça superior (não entender etnológica nem darwinisticamente, por favor). N. cita Napoleão como o exemplo de um homem que susteve o otimismo do homem quanto a si mesmo, pelo menos no que concerne ao século em que N. pensava.
O egoísmo indisfarçável da massa, ou “rebanho”, que tenta aplicar sua vontade de poder aos mais fortes, no que recebem, como contragolpe, reacionarismos que os fazem decair em niilismo, pode ser considerado outra razão da existência deste último (avatar do niilismo).
Note-se que mesmo “os mais fortes” do parágrafo acima não correspondem ao modelo de homem superior preconizado por Nietzsche. Significa que, vulneráveis ainda que são, tragados pela volúpia autodestrutiva do rebanho, imergem igualmente no niilismo.
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Schopenhauer partiu do pressuposto equivocado – considerando-se não-cristão, tudo que fez foi “melhorar” Kant, se é que fazer o ruim em cima de conclusões precipitadas pode ser assim chamado, ao culpabilizar o universo de erro e mal supremos, para cujo paliativo restava a minguada vontade da música ou numa indiferença que não era nem estoicismo nem epicurismo, uma ética mundana de deixar viver e não ter filhos...
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O pós-moderno em Nietzsche tem o nome de idade trágica: as duas tendências claramente apontadas por Jair Ferreira dos Santos estão aqui – 1) a tristeza que supera a alegria, o andróide melancólico; 2) a alegria que supera a tristeza (seu inverso, o hedonista, que não é menos niilista, pois apenas refuta a realidade inutilmente).
Ou para Nietzsche haverá um agravamento: são, estes dois, traços de uma condição mais extrema de niilismo ainda-por-vir.
Mas e o filósofo, que se inconforma com a falta de sentido para a vida? Não vê ele a necessidade de haver um fim? E não é ele uma profissão ou ocupação aceita, ou ao menos tolerada?
(...) o niilismo só é sentido pelos mais fortes de nosso tempo. É equivalente, quando extremo, a uma maneira divina de pensar. (...)
A civilização é estéril, o oposto da verdadeira Cultura. A sociedade, ou humanidade, é mera abstração.
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Um livro que é claramente apenas um esboço, rascunho. Ainda assim, tal é a superioridade única de Nietzsche que dele hoje a humanidade precisa se servir, dos cacos do que seria a mais majestosa das obras.
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A sensação que nos acompanha de que não executamos as coisas com perfeição está ligada ao desligamento (insalubre) dos instintos. Ao Idealismo e sua sombra. À moribundice. Seria a sociedade dos jogos essa recuperação? Eu diria que não, pelo pesado revés chamado automóvel. Somos científicos demais, e sem Gaia na equação. Compreender deveria ser um fim, não um meio – sem fim.
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Décadence: gênio e charlatão na mesma pessoa. A continuação do Caso Wagner (em toda obra sua!): como combater o monstro que ele próprio criou.
Enunciação do Fim da Arte, da morte da criação de estilos. Sintomático disso, para ele, é que as mulheres estão gostando da música dramática, aprovam-na, clamam-na. E é justamente nesse ardor abobado que está todo o mal. Mulher não entende de música.
A música em si, propõe, não é, desde o começo, as óperas primevas, um reacionarismo à Renascença, ao espírito clássico, a síntese da décadence (próxima do Rococó – Romantismo em hipérbole)? Ora, Mozart e Beethoven são românticos na essência, e a ironia é que se os chamam de “clássicos”, suas óperas são MÚSICA CLÁSSICA! O Clássico que prosperou no século XVIII, já na era moderna, anti-clássica!
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A decadência não deve ser combatida. É natural e própria das culturas. Desde que se mantenha a saúde do indivíduo excepcional íntegra, a decadência é mesmo necessária, visando a um póstumo desabrochar e reelevação cultural. Os críticos invertem a relação: para eles o niilismo nascente é a causa da decadência. Mas o niilismo é só a conseqüência lógica da própria decadência.
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Por conseguinte, a religião é a culpada da inversão dos instintos. Nietzsche foi um assassino antes da hora. (...) Mas será que Édipo consegue ser um animal? (...) Na cena do Zaratustra em que os sábios louvam o burro, quereria isso dizer que o super-homem seria um animal? Não, não, não!...
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O eterno retorno implica que este momento seu é todos os outros. Infinitos para trás e para a frente, se é que existe algum sentido em dizê-lo. Tudo ao mesmo tempo agora, seria a simplicidade da filosofia de Nietzsche, sem erros. A vivência em paralelo de novo e de novo pode ser resumida facilmente na atual, pois se não se conserva nada, se suas memórias vigentes são apenas o produto do universo em curso, que é o devir idêntico ao anterior-posterior, tem-se que é como se – e É! – se vivesse agora então para a eternidade.
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Os impulsos impávidos de que se servirá o super-homem ainda não tomaram consciência de si mesmos.