E depois

Depois de tudo ter conhecido e todos os gostos ter provado e todos os toques os dedos terem tocado, após todo o silêncio e os olhos esquecerem- se de chorar, eis que ao meio dia esta a lembrança como se buscasse alcançar a saudade. Como se na falta pudesse puxar a linha da sua essência, a profundidade de outrora que agora tão ausente. Tudo superficialmente belo e indescritível, mas o vôo do passaro, efêmero. O vôo do pássaro sem anotação.

De alguma forma, ela havia entendido a contragosto que aquilo que se ama, se solta. Passa como a água pela torneira e se lava. A vida estava transparente e límpida. Todas as partículas da juventude, todas as pedras encrostradas, toda a insuportável dor haviam se esvaído, sucumbido num ralo que curiosamente, noutros tempos ela relutava e sufocava com as mãos para que fossem embora. Hoje não se lembra e não lembrar a confunde nesta hora clara do dia. Angustiosamente normal e humana. Angustiosamente sem poesia, mas não porque alegre, mas porque sem dor, apenas.

A clareza do quarto e a sombra do alambrado na cortina com sol não têm segredo. Será que nada mais há para ser dito? Sempre há. É que não existem flores, não existe um buquê arranjado mas de alguma forma ela sabe falar da mata e é fiel à sua realidade e seu misto de beleza e traços desagradáveis. Sabe contar da altura das árvores e de como a grandeza a faz se sentir parte de algo. De como crianças passeiam felizes em família e como os pais parecem aleatórios aos bichos, às observações.

Sim, de certa forma ela se tornara uma dessas mães. Como ser mãe sem ser criança? Não pode contar mais do que as árvores. Talvez não possa imaginar. Talvez abra a janela porque não pode contar sobre esta sombra que bate, não pode ir no profundo do dia, ao meio dia.

Entendeu que o pássaro passa e somente passa. O vôo já teve noutros tempos, outros significados. Sente saudade mas não pode voltar. Entende que muito da beleza ficou ali, onde escrevera. E que sempre olhará para si como um bicho que sangrara as dores e delícias caóticas, intensamente.

Hoje algum gênio poético veio buscar o que era seu. Seu tempo fora dado e passou. Ela não relutou. Os dedos se conciliaram com a vida e a observaram voar, sabendo que seria mais raro. Mas que um pássaro sempre cruza o horizonte, mais colorido que os demais. Sabe que por alguma circunstância seus olhos o terão mais vivo ou mórbido e dentro de si o sentimento se lembrará das violências mentais de sangrar no papel, de estraçalhar e depois ressignificar a dor ou só doer para que os olhos desconhecidos curem. É um hiato e uma miséria anônima, mas o coração bate e os olhos veem os verdes e tudo o que ainda está, na sua crueza, da mesma forma que sempre foi. Ela quem mudara, e não a vida.

Beatriz Beraldo
Enviado por Beatriz Beraldo em 26/04/2021
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