Queremos mesmo o abismo?
Parece que estamos a cada dia mais distantes da nossa humanidade. Parece que o nosso senso de compaixão, de empatia, de respeito ao próximo e à sua existência tem desaparecido gradativamente. Mas o pior é que isso acontece e ninguém parece se importar, ver, fazer alguma coisa para que a multidão interrompa os seus passos, reveja os seus caminhos e identifique que se prosseguir por essa rota não haverá outro destino se não um profundo e colossal abismo. Abismo de dor, de apatia, de crueldade, de egoísmo, de torpeza, de ganância, de impiedade e de toda a sorte de más ações e duvidosos sentimentos que possamos compactuar uns pelos outros. Pode parecer cena de distopia. Pode parecer que o que descrevo é apenas um filme de ficção, mas se continuarmos nesse ritmo, afastando-nos de nossos sentimentos humanos, não haverá outro fim para a nossa espécie se não a sua extinção causada por si mesma.
E digo isso porque assistimos nos últimos tempos a muitas cenas de completo descaso e desrespeito. Você deve se lembrar dos dias de quarentena, no final do fatídico ano de 2020, quando muitos de nós ignoraram a verdade, ignoraram a guerra que travávamos, e festejaram, aglomeraram-se, pouco se importaram com aqueles que perderam os seus entes, com aqueles que poderiam perder em razão de suas posturas inconsequentes. Outro exemplo que muito me impactou foi o fato de um cliente ter agido de forma inteiramente agressiva e descontrolada porque não tinha ketchup onde ele ia comer. E ainda houve aquele caso de um entregador que foi revoltantemente humilhado por alguém que, vazio de espírito, se considerou digno de seu próprio show por ter um valor a mais na conta bancária. Mas de que importa o dinheiro que temos? De que importa o poder que pensamos ter? De que importa o momentâneo status que carregamos antes do nosso nome? Nada disso nos livrará da morte ou do esquecimento. Só permaneceremos vivos e lembrados se tivermos morada em algum coração.
Citei esses casos porque ganharam proporção, mas quantas outras coisas inimagináveis acontecem por aí e ninguém fica sabendo? Coisas que apavoram. Coisas que não podem ser descritas tamanho o horror. Coisas que podem acontecer até mesmo dentro de nossas casas. Achamos desprezível o que acontece por aí, escrevemos textos repudiando ações que dizemos detestar, mas como é que tratamos aqueles que dividem o teto conosco? Que palavras lhes dirigimos? Que gestos lhes demonstramos? Muitos estão doentes, sentindo-se destruídos, e não é porque foram vítimas enquanto andavam nas ruas, mas porque dentro de suas próprias casas, onde deveriam encontrar alívio e refúgio, só podem desfrutar de dores e rejeições.
E se continuarmos assim, agindo mal à luz do dia ou atrás de quatro paredes, encaminharemos o nosso mundo para um cenário de abandono e desolação. É o que queremos? Vamos trocar o paraíso que podemos construir pelo inferno que já planejamos? Muito se fala num lugar melhor, num lugar que nossa frágil e limitada mente não pode imaginar, mas como podemos acreditar num lugar assim se o nosso lugar, aquele no qual estamos nesse momento, sentindo e vivendo de fato, a cada instante se transforma num cenário de guerra? Como podemos acreditar no céu se insistimos em fabricar o nosso inferno? Tem algo errado aí. O nosso céu não pode ser construído a partir das ruínas dos outros.
(Texto de @Amilton.Jnior)