Impermanência

Tanta coisa aconteceu nos últimos dois anos (2020 e 2021). Parece que algo quebrou-se dentro de nós. No momento em que escrevo esse texto mais de 307 mil vidas brasileiras se perderam em decorrência da pandemia global do covid-19. Essa semana em apenas um dia 3.600 vidas se foram. Não são números. São vidas. Pessoas cheias de sonhos, jovens ou não, que tiveram sua vida interrompida. Foi o amor da vida de alguém, o filho (a) querido de alguém, a mãe ou pai tão amados de alguém que se foi tão rápido, sem despedida, sem abraço, sem palavras.

Quando vemos falando no jornal: “Agora vamos passar os números da covid em apenas 24 horas”, parece que naturalizamos aquelas trágicas notícias. Ouvimos e as vezes até trocamos de canal para não ouvir mais, como se estivéssemos no automático. No entanto, não podemos achar normal. Vamos imaginar 3.600 pessoas diante de nós, nos olhando e indo embora. Ou um grande centro urbano, como por exemplo, Petrópolis no Rio de Janeiro ou Palmas no Tocantis, que tem uma população aproximada de 307 mil pessoas, simplesmente desaparecendo. Isso não pode ser normal.

Essa doença tira até mesmo a dignidade da pessoa que não pode ter sequer um velório e enterro dignos. Não há tempo de se despedir. Presenciei caixões saindo do carro da funerária direto para a cova. E as pessoas que deslocaram o caixão estavam cobertas dos pés à cabeça. Parecia um filme de ficção científica. Quantas famílias brasileiras viveram o luto e perderam inclusive mais de um familiar para essa doença.

Muitos de nós nunca imaginou vivenciar uma dor tão desestruturante. Essa dor envolve injustiça, desigualdade social, corrupção, guerra política, capitalismo. Sim, o capitalismo levou essas vidas, porque colocou-se a economia acima da vida humana. Não só no Brasil, mas no Mundo. Vale ressaltar que no Brasil esse cenário é pior, já que o Brasil é o país do mundo em que nesse momento ocorrem mais mortes diárias por covid.

O capitalismo, esse sistema falido e iníquo, leva não só nossa força de trabalho, mas também nossa sanidade mental, e em alguns casos parte da nossa humanidade. Reconheço que nos perdemos trabalhando tanto pelo nosso sustento e em alguns casos por um conforto. Poluímos tanto o meio ambiente e a nós mesmos. As redes sociais mostram pessoas sempre lindas, ricas, usando marcas caríssimas, que nos fazem sentir inferiores, incapazes, indignos de felicidade, de amor, não merecedores, não pertencentes.

A sociedade cobra um padrão tão alto de vida, de beleza, de saúde (porque nem a vida fitness conseguimos seguir) que é inalcançável, porque é irreal. Nas redes sociais, as pessoas mostram-se com ‘quilos de reboco na cara”, com cílios postiços, alisadas, magérrimas, com lipo, botox e depois disso tudo, com filtro ainda por cima, para assegurar que não restou nada humano e real. Olhamos isso e pensamos que somos feias, por não alcançar essa beleza no dia-a-dia. Redes sociais que de sociais não tem nada. Nos deparamos ansiosas, tristes, depressivas, por uma farsa. Quanta gente comparando seu bastidor com o palco dos outros. Quanta gente sofrendo, se machucando, e até se suicidando por não se sentir aceito em uma sociedade que não aceita o que é de verdade. Só aceita a aparência, a mentira, o forjado. Que sociedade é essa afinal?

Essa sociedade cobra de nós que sejamos “pessoas de bem”, moralmente corretos, que estejamos sempre bem, felizes, “good vibes”, positivos, bem de vida, realizados, usando marcas caras e nos proíbem de sentir, de ficar tristes, depressivos, fora de moda, fora do padrão de beleza, talvez por isso, muitos vivam se anestesiando com entretenimento, festas, bebidas alcóolicas, drogas, sexo, para fugir da realidade (no entanto, a tristeza é um sentimento humano assim como a alegria, e ambos devem ser sentidos e vividos). Nos proíbem de ter falhas de caráter, de errar, quando na verdade o moralmente correto está podre por dentro. Me faz lembrar de Jesus que ama o pecador mas não ama o pecado. Que disse aos “homens de bem” diante de uma prostituta: “Quem não tem pecado, que atire a primeira pedra”. Nenhum deles teve coragem de atirar a pedra, porque sabiam que Jesus conhecia seu interior, seus pecados ocultos.

Diante das vivências do momento atual, muitos não sabem no que acreditar, ou mesmo não estão conseguindo crer em Deus. Nós podemos escolher como olhamos para as circunstâncias. Se olhamos somente para o sofrimento, as dores, as tragédias, as mortes ou se olhamos para as curas, para as boas ações de seres humanos dividindo o pouco que tem com os outros, para o milagre da vida, para coisas boas que acontecem e que alguns consideram felizes coincidências. Observe até para as pessoas, nós escolhemos se olhamos para os defeitos ou para as qualidades. Dependendo do nosso olhar a descrição da pessoa será diferente. Assim ocorre com Deus. Algumas pessoas o veem como um Deus distante e malvado, que pune as pessoas. Já outras, como eu, o veem como um pai amoroso que cuida e protege seus filhos, dando tudo o que eles precisam, inclusive para seu aprendizado.

Em minha ignorância (quem sou eu diante da grandeza de Deus?), suponho que esse tempo não seja um teste (o Deus a quem eu sirvo, jamais permitiria isso tudo para nos testar). Mas creio que Ele permitiu tudo isso, afinal não cai uma folha seca de uma árvore sem a permissão de Deus. Não é possível saber os desígnios Dele, afinal são mistério, mas suponho que Deus quer nos ensinar algumas coisas, como por exemplo, voltar a essência, voltar a valorizar o que tem valor e não tem preço, olhar nos olhos e não nas telas, apreciar a presença, a companhia, ouvir de verdade, desenvolver a empatia, o amor ao próximo, deixando de lado nosso egoísmo, toda a farsa, toda desumanidade.

É momento de redirecionarmos nosso olhar para a beleza da natureza, para o sorriso, para o toque quente humano, para o ar, para a voz, para o cheiro, para a vida, para a esperança da salvação, para Deus. Volta logo Jesus! Sua presença é maior, melhor, satisfaz mais do que qualquer coisa no Mundo. Sua presença preenche completamente o coração humano. Nosso desejo é estar contigo Jesus. Quando vemos tanto sofrimento e sentimos tanta dor, só reforça ainda mais nossa vontade de estar na eternidade com Deus, onde toda dor cessará.

Por fim, é preciso reconhecer nossas falhas, vulnerabilidades, pecados ocultos, fragilidades, egoísmo, reconhecer o quanto não somos nada, não somos bonzinhos e nem melhores do que ninguém. Precisamos entender que por sermos tão errados quanto qualquer outro ser humano, precisamos tratar o outro com respeito, com amor – assim como Jesus nos ensinou – independente de como o outro seja ou o que ele faça. É essencial reconhecermos nossa inconstância (estamos bem hoje e amanhã já não estamos – nos sentimos corretos hoje e errados amanhã), nossa impermanência (a vida é passageira, amanhã podemos não estar mais vivos) para então compreendermos que precisamos viver a vida em sua essência, sendo humanos de verdade e entendemos, portanto, que há beleza na imperfeição, há força na fraqueza, há coragem em reconhecer suas falhas. Isso é reconhecer-se humano.

Ghane Kelly Gianizelli
Enviado por Ghane Kelly Gianizelli em 28/03/2021
Código do texto: T7217960
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