As palavras sabem muito mais longe, de Bartolomeu Campos Queirós
Querido Mateus
Palavras que amamos tanto, há muitos anos, dormem em dicionário. Hoje tirei do sono três palavras para dar de presente a você: Livre, Terra e Irmão.
Quando escritas, lê-se poesia; se faladas, são melodia: somadas, fazem novo dia.
Com saudade, despede a
Ana
Maria, amiga minha
Recebi carta de Ana. Carta pequena, mas grande em amor. Veio de longe, com três palavras de presente. No silêncio entre as palavras, eu li seu coração muito livre. Ao me falar de nossa terra, me chamou de Irmão.
Acordei três outras palavras para enviar a você: Pátria, Trabalho e Justiça. Prometa-me não deixá-las dormir de novo.
Com saudade, despede o
Mateus
Amigo Marcos
Eu já lhe falei do meu carinho pelas palavras. Mateus me escreveu. Dentro do envelope estavam três palavras escolhidas. Disse-me que Pátria, Trabalho e Justiça não podem ficar esquecidas. Guardei, com cuidado, no coração o seu presente. Sinto vontade de gritá-las. Sei que a terra inteira vai gostar de ouvi-las.
Não vou acordar palavras para dar de presente a você. Peço sua ajuda para fazer dormir palavras que há muito andam acordadas: Fome, Opressão e Violência.
Todo o carinho da
Maria
Marta, amiga querida
Quando o dia amanhece, vejo o sol entrar por debaixo da porta. Hoje, junto com sua luz chegou uma carta. Trouxe notícias de Maria, que me pedia um favor: ajudar a fazer dormir palavras que há muito nos machucam. Ao levar as palavras para o sono, descobri outras que estavam acordando.
Abri as páginas do dicionário. Elas voaram céu adentro: Paz, Esperança e Respeito. Penso que muito em breve nós vamos ler estas palavras no rosto de cada um.
Com a amizade de sempre.
Marcos
Caro Lucas
A chuva, nesta amanhã, lavou os campos. Ao abrir a janela, vi uma fita colorida abraçando o mundo. Tomei do arco-íris três cores para você: Verde, Amarelo e Azul.
Não sei se o carteiro vai descobrir meu presente. Estou lhe enviando o Brasil. Abra a carta e deixe a liberdade voar sobre nós.
Sua amiga
Marta
Sara, amada
Como são fortes as palavras! Elas dizem coisas que só o coração escuta. Se escritas sobre papel claro, ficam mais iluminadas e eternas. Sei que as palavras podem abrir novo caminho.
Procurei dentro de mim alguma palavra dormindo. Só encontrei uma: Igualdade. Ela nos permite viver as diferenças.
Até muito em breve,
Lucas
Meu caro João
Um dia todos nós vamos receber uma carta. Ela chegará como um sonho, nos acordando para nossos Direitos e Deveres. Todas as palavras serão conhecidas. Será uma carta clara como os nossos desejos. Passaremos a morar em um país correspondido.
Mando ainda três palavras para nossa correspondência: Eleitor, Expressão e Escola.
Sua amiga,
Sara
Caríssima Ana
No princípio você deu palavras de presente a Mateus. Ele acordou outras e multiplicou as cartas. Agora muitas palavras moram acordadas em nosso sonho.
É tempo de escolher quem saiba somar nossas palavras em uma grande carta, Carta Maior (1), feita de pequenas cartas.
Que esses nossos representantes sejam Justos, Próximos e Verdadeiros. E que sejamos atentos, para não ficar uma só palavra esquecida.
Assim, as palavras vão sair do nosso sonho para viver entre nós – sempre.
Com muito amor,
João
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. As palavras sabem muito mais longe. In: Correspondência. Belo Horizonte: Governo de Minas Gerais, 1986.
Nota
1 - O autor refere-se na época a Constituinte.