O desamparo do livre-arbítrio - Santo Agostinho
Na tradição cristã medieval talvez o filósofo que tenha desenvolvido uma visão bastante pessimista do ser humano foi Aurélio Agostinho – mais conhecido como Agostinho de Hipona ou Santo Agostinho (354 – 430). Para Santo Agostinho, o intelecto humano, através da racionalidade, não consegue exercer com eficiência o controle sobre a conduta moral. A racionalidade moral da alma fraqueja diante das “vontades” da carne ou do corpo. É daí que advém toda a perdição do ser humano; ou aquilo que o filósofo irá chamar de pecado. Nosso desamparo moral.
Santo Agostinho não nos via com grande admiração. A visão sombria do filósofo sobre nós mesmos vem de uma tradição religiosa cristã medieval. O filósofo Agostinho, com sua visão pessimista do ser humano, afirmava que todo sofrimento humano tem duas causas: o “mal natural” causado por forças externas como terremotos, doenças, secas, chuvas excessivas..., e o “mal moral” causado pela ação humana como assassinatos, torturas, ambições, guerras, crime passionais e tantas outras violências dos desejos ou das paixões humanas. Em Santo Agostinho, o nosso desamparo se dá pelas causas naturais e morais.
É vasta a quantidade de filósofos, antes e depois de Santo Agostinho, que desenvolveram uma visão pessimista sobre nós seres humanos. Para ele, as paixões ou as vontades governam todos nós para o bem ou para o mal. De acordo com Agostinho, quase sempre para o mal. Das paixões ou vontades nascem os males que nos causam os pecados que são frutos do livre-arbítrio, nosso desamparo. Como podemos então compreender a noção de “pecado” proposto pelo filósofo a partir do livre-arbítrio?
Para Santo Agostinho, a liberdade humana está diretamente relacionada com a vontade (do corpo) e não com a razão (da alma). Segundo o filósofo, a alma racional foi criada por Deus para governar o corpo e exercer o bem. No entanto, o livre-arbítrio permite racionalmente que o ser humano possa ser capaz de escolher o bem e o mal. Conforme Agostinho, Deus ao criar o ser humano (Adão e Eva) como seres racionais permitiu a possibilidade para que eles pudessem escolher o mal em vez do bem. Ou seja, foi permitido ao Adão e à Eva a liberdade de fazerem escolhas morais, inclusive, a possibilidade de fazer o mal. Por isso mesmo, Deus não é a origem do mal.
Ao dizer que Deus não é a origem do mal, Agostinho queria dizer com isso o seguinte: o que tornou Adão e Eva capazes de obedecerem as ordens de Deus também os tornaram capazes de desobedecer. Surge assim, a noção de pecado proposto por Santo Agostinho. Por quê? Porque a racionalidade é a capacidade de avaliar as escolhas por meio do processo de raciocínio. E este processo só é possível onde há liberdade de escolha que incluiria a liberdade de escolher o errado – que é, portanto, o pecado. É do livre-arbítrio que reside e sustenta a noção do pecado. Por isso mesmo, o livre-arbítrio nos causa desamparo.
Para Santo Agostinho, a pessoa peca porque ela usufrui do seu livre-arbítrio para se satisfazer de uma “vontade má”, mesmo consciente que tal ação é pecaminosa. O pecado é esta vontade má e consciente causada pela ação do ser humano. O pecado é o mal moral (nossa vontade má) que é produto do nosso livre-arbítrio. Vejamos como o filósofo em seu livro, Confissões, demonstra as causas mais comuns do pecado: “O ouro, a prata, os corpos belos e todas as coisas que são dotadas dum certo atrativo. O prazer de conveniência que se sente no contato da carne influi vivamente. Cada um dos outros sentidos encontra nos corpos uma modalidade que lhes corresponde”.
O corpo promove a “vontade má” - o pecado -, porque ele está submetido as nossas emoções que subjuga a razão. O mal, o pecado, é produto das paixões do corpo, nosso desamparo. A razão não controla as paixões da carne. O pecado é fruto do forte desejo que temos seja por objetos, dinheiro e, sobretudo, a luxúria do corpo. Diz Agostinho no seu livro Confissões: “a vida neste mundo seduz por causa duma certa medida de beleza que lhe é própria, e da harmonia que tem com todas as formosuras terrenas. Por estes motivos e outros semelhantes, comete-se o pecado...”. Para o filósofo, “o pecado da carne” resulta das paixões ou vontades do corpo e isso nos impede de ter uma autonomia moral. Ou seja, perdemos a capacidade de deliberar livremente nossa conduta moral devido ao pecado da carne. Daí o desamparo moral que nos domina e aflige.
Razão versus pecado. As paixões da carne derrotando a razão. Santo Agostinho acreditava que nosso lado racional deveria manter as paixões do corpo sob controle; visão esta que ele adotou de Platão. Assim como o filósofo da Grécia Antiga, Agostinho acreditava que os seres humanos, ao contrário dos animais, têm o poder da razão e deveriam usá-lo. Ele acreditava também que por intervenção da graça divina poderíamos nos salvar das tentações da carne. A fé na graça divina e o poder da razão não foi páreo à luxúria no corpo. O pecado vence e a alma agoniza desamparada.
Santo Agostinho orou à Deus para ele nos livrar do pecado original que promoveu a nossa queda do paraíso. Tem algo de revelador na narrativa bíblica do mito da queda. Talvez a desobediência de Adão, em relação a Deus, estava diretamente relacionado ao desejo dele ao corpo de Eva. Sendo assim, Adão preferiu Eva do que a Deus. A beleza do corpo de Eva pode ter sido a causa da desobediência de Adão à proibição divina. A nudez do corpo de Eva despertou “vontades” no corpo de Adão. Acordou suas paixões e desejos que pareciam não existir. O corpo feminino promoveu o desamparo moral no paraíso. A queda de Adão foi ter desejado Eva.
A visão misógina na história da cristandade está, em grande parte, relacionada com este poder de sedução corporal primitivo não consciente da mulher. O pecado original está diretamente relacionado ao pecado da carne. Eva era atrativa, mesmo sem saber, Adão não se conteve os desejos do seu corpo. A luxúria venceu Deus. O desejo da carne – a “vontade” – foi a danação do casal no paraíso; seu desamparo e abandono.
Agostinho antecipou toda a problemática do “pecado da carne” e seu elemento transgressor da constituição da moral humana, ou seja, a questão do desejo do corpo como responsável por todo desamparo moral. Amante das mulheres, ele sabia o quanto a beleza física delas corrompia e dilacerava qualquer fundamento moral no homem. Mesmo após convertido ao cristianismo, já Bispo da Igreja, ele ainda era perturbado pelo desejo sexual em relação as mulheres. O feminino causava no Santo Agostinho seu maior desamparo moral, seu pecado primordial.
É sabido que o filósofo Agostinho rezava à Deus para que o livrasse do desejo da carne, mas ao mesmo tempo pedia ao próprio Deus, em suas orações, que adiasse tal pedido: livrai-me Senhor de tamanha tentação: “mas não agora”. Pobre Agostinho, mesmo depois de convertido a castidade, lutou com fé para se afastar dos desejos da carne. Seu corpo agonizava desamparado pela luxúria. A beleza feminina era o seu desamparo moral; por isso, para ele, o corpo da mulher promovia o pecado da luxúria nos homens e causava desamparo moral. A castidade parece impossível diante da beleza feminina. Oremos para que o desejo sexual pela mulher não nos faça cair em tentação e pecado: “mas não agora”. Amém!