Ser atomizado

Numa coleção de atuações percebo que o centro da vida comum se volta à técnica e ao âmbito do trabalho, quem não está provando dessa cepa, provavelmente ainda está perdido, angustiado e louco para se encontrar e “focar” no objetivo de conseguir um bom trabalho, que por sinal, tem que ser no Estado, afinal de contas, ser concursado e não depender de “patrão” nos moldes do âmbito privado implica vencer a escravidão moderna ao qual somos submetidos. E assim vejo essa coleção de atuações fingindo desinteresse no mundo acadêmico, mas ao mesmo tempo, entrando em depressão, ansiedade, melancolia, tristeza e desesperança por não estar num nicho de produtividade que porventura, proporcione uma engorda do currículo Lattes para que assim, seja possível realizar algum concurso público para professor efetivo.

É uma corrida desenfreada e no teatro da amizade existe muita desconfiança, competitividade e atenção ao que cada um está fazendo da vida. É uma curiosidade imensa para saber o que o colega de “corrida” ao lado tem feito, como tem “treinado”. De fato, é uma atomização do indivíduo como uma espécie de empresa que precisa acumular ativos: curso de idiomas, boa escrita, boa produção, artigos, capítulos de livros, aulas ministradas, experiência acumulada, enfim, uma série de requisitos que o indivíduo como empresa de si precisa alcançar para poder competir com outras empresas.

A concorrência qualificada aumenta, as vagas diminuem e a frustração apenas aumenta, afinal, as pessoas querem poder ganhar bem, trabalhar de forma relativamente saudável sem a pressão do mercado e de nenhum ente privado, ser aglutinado pelo Estado é a panaceia para a resolução dos problemas materiais da vida. Num país com níveis extremos de desigualdade, ganhar R$ 10.000,00 numa cidade como São Paulo implica estar num grupo seleto de apenas 3% de pessoas que ganham um rendimento assim, e fazer parte dos 2% da população brasileira numa posição confortável em termos materiais. O nível de desigualdade no Brasil é tão elevado que isso gera em nós uma série de pressões e para o pobre essa pressão se revela no fato de que a única forma de superar isso é estudando, ou seja, fazer do estudo uma forma de “vencer na vida”, não há outro caminho para se ter uma vida confortável no Brasil, de uma ou outra maneira, trabalhar no Estado é o elemento essencial para se poder viver bem.

Penso muito sobre isso e vejo que todas as ações, posições e formas de pensar das pessoas estão condicionadas por essa base material. São interesses e escolhas permeados pelo imperativo material, não temos como fugir disso, pois somos matéria, precisamos nos alimentar, vestir, ter lazer, enfim, uma série de condutas que se ligam ao imperativo das relações sociais de produção e que condicionam nossa forma de pensar e agir, mesmo que alguns digam que não, reforço que não há como fugir disso.

E continuamos a fingir que não concorremos uns com os outros para tentar manter algum nível de cordialidade, mas é a guerra de todos contra todos o que de fato vivenciamos. Chegará um momento em que a vaga que eu quero o meu colega também irá querer e há apenas uma vaga, de forma objetiva uma pessoa ficará descartada, ou como há na física: “dois corpos não ocupam o mesmo espaço”. E nessa vida atômica de empreendimento de si, de poucas relações afetivas, poucas aberturas, submissão ao trabalho e a acumulação de capital cultural para concorrer nas estradas da vida, vamos perdendo o que temos de humanidade, perdemos a empatia e a preocupação com o outro porque o outro é meu “concorrente”.

Quaresmo
Enviado por Quaresmo em 15/02/2021
Código do texto: T7185207
Classificação de conteúdo: seguro