Carta à Psicóloga

Preciso escrever, apenas dessa forma consigo enxergar aquilo que incomoda e atenta o meu juízo. Sei que as sessões de psicanálise devem ser mais espontâneas e livres das amarras das elaborações dos turnos discursivos, mas não consigo me sentir em paz se não escrevo. É uma necessidade quase fisiológica que minha mente sente em se esvaziar daquilo que a atormenta.

Quero iniciar falando sobre o Maldonado. De fato, em outras sessões recordo que o meu relato era que eu tinha me afastado dele. O grande problema é que ano passado a mãe dele faleceu e eu meio que me senti na obrigação de ir ao velório e enterro. Dona Odete gostava bastante de mim e como consideração resolvi ter essa reaproximação da família. Em termos concretos eu não tenho nada contra a família do Maldonado, suas irmãs me tratam bem e eu nunca tive problemas. Meu real problema é de ordem subjetiva com o Maldonado, o comportamento dele me incomoda bastante.

Após um tempo sem ir à cada dele, resolvi por um motivo que não recordo atualmente, fazer uma visita, e nessa visita acabei indo algumas vezes em seguida. O fato é que meu colega não mudou, eu pensava que de alguma forma ele teria amadurecido com o falecimento da mãe, mas me enganei, ele continua com posições excêntricas que ativam em minha psique uma espécie de alerta.

Como você sabe eu sou uma pessoa muito discreta, aquele ditado de que o Mineiro come pelas bordas se aplica bem a minha pessoa. Gosto de fazer minhas coisas na surdina, penso que quanto menos souberem dos meus objetivos, terei êxito. Deve ser alguma espécie de superstição ou neurose. Ah, por sinal, acabo de lembrar o porquê da minha reaproximação com o Maldonado. Há seis meses terminei meu namoro com Luana e estava me sentindo bastante sozinho. Meus domingos sempre eram preenchidos pela minha visita à casa da Luana para namorarmos, ou passearmos no parque, com o término do namoro fiquei sem opções, a ponto de passar o Natal lá na casa do Maldonado, algo que eu sempre fiz, durante seis anos com Luana.

Bom, mas retornando a minha neurose. O grande problema é que Maldonado é uma pessoa curiosa que gosta de ficar investigando sobre a vida das pessoas. Ele fica jogando o meu nome no Google para saber meus passos, o que estou fazendo. Em uma dessas pesquisas ele descobriu que fiz mestrado e na cabeça dele já sou Doutor. Além disso, pegou o nome do meu Orientador e fica enviando pra mim prints do meu currículo Lattes. Eu realmente reprovo esse comportamento porque sei que ele fica me stalkeando e isso não é bom. Ele fica querendo saber meus rumos profissionais, o que estou fazendo, por onde ando e em que espaços estou me inserindo.

Para você ter uma ideia, ele é enfermeiro de formação, contudo atualmente é operador de telemarketing. Nunca chegou a atuar como enfermeiro num hospital, portanto, não tem experiência e acabou correndo da profissão. Vive fazendo ENEM, e sempre troca de curso: inclusive, vive seguindo os meus passos, no sentido das escolhas dos cursos. Cursou História, mas desistiu, fez um tempo de Pedagogia, mas desistiu, fez também Matemática e desistiu. E agora pretende retomar Pedagogia. Para ser sincero, ele sempre criticou meio acadêmico, disse não gostar. Mas, agora diz que quer fazer Mestrado.

E não é só isso, percebo que ao falar em questão de emprego, ele fica bastante ansioso. Fica curioso a meu respeito. Fica citando diversas vezes que eu sou Doutor. Isso chega a ser de certa forma assustador. Eu quero distância dessa pessoa, ela de fato me faz mal por algum motivo. Será que estou viajando muito ou tem algum fundamento a minha interpretação ?

A vida profissional é algo que me entristece muito. Minhas leituras e interpretações materialistas das relações sociais sempre me deixam bastante depressivo diante da vida e das possibilidades de empregabilidade da minha área. Ultimamente estou pensando em fazer uma graduação “pirata” em Pedagogia. Veja bem, como sou licenciado consigo concluir o curso de Pedagogia no período de um ano. Pra mim o objetivo é estritamente profissional. Essa área proporciona uma maior vazão para concursos públicos em prefeituras, algo que o Maldonado também percebeu e está correndo atrás. Eu, penso em fazer a distância, já tenho duas graduações presenciais: História e Economia, com pós em Economia e de fato, não vejo grandes oportunidades de concurso nessas áreas, por outros lado na Pedagogia sempre vejo muitas vagas em prefeituras.

Queria um conselho seu. Sei que me aproximei do Maldonado para ficar de boa, sou o tipo de pessoa que não gosta de ficar de mal com ninguém. Mas, acho essa relação tão tóxica a ponto de ficar neurótico com os comportamentos estranhos do Maldonado. O que você acha que eu poderia fazer ?

Olha, ao mesmo tempo que fico pensando nessas coisas, bate uma angustia. Você sabe, já relatei. Vivo fazer e excluindo rede social. Mas hoje, tava dando uma olhada no facebook e vi uma professora marcando um aluno dela, de Pedagogia, numa postagem sobre a atuação de homens na Educação Infantio. Ao ler a respectiva postagem minha mente acionou todo um circuito de angústia, começo a pensar na minha vida profissional, vem a imagem do Maldonado fazendo Pedagogia na minha cabeça, passo a pensar que nunca terei êxito e ficarei trabalhando no comércio, vendendo minha força de trabalho de forma escrava.

Olha é uma agonia sem fim. Bate aquela vontade de me isolar, excluir todas as redes sociais e acabo pensando em suicídio como a única solução diante de toda essa agonia mental.

Quaresmo
Enviado por Quaresmo em 30/01/2021
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