Reflexões de uma tarde infrutífera
Como eu tivesse muitos afazeres mas nenhuma vontade, decidi passar as horas que se seguiram depois do almoço -- um almoço atípico, porque atrasado -- tentando justificar-me o porquê da minha passividade. Pensei nas palavras de São Paulo Apóstolo na epístola aos Romanos, capítulo VII, versículo 15: "(...) De fato, não entendo o que faço, pois não faço o que quero, mas o que detesto (...)". Geralmente, frente às obrigações, os meus dias são assim, constituem-se numa tensão permanente entre o desejo e a vontade. Graças a Deus, pois todo o bem que pratico vem d'Ele, a entrega à passividade acontece muito raramente comigo: sou diligente com o meu trabalho. Contudo, há dias nos quais sou tomado por tamanha fraqueza, tamanho arrefecimento do espírito que me entrego, como um náufrago que perdeu todas as suas forças, ao capricho das ondas, à mercê das horas que se vão.
A vontade distingue-se do desejo, porque este é uma mera manifestação instintiva, vazia de reflexão, de algo a que se quer sem propósito objetivo; geralmente o desejo não passa da busca por uma centelha de prazer, por um caniço de satisfação. A vontade não, ela é o oposto. Voluntas, do Latim, "querer" é uma resolução consciente de algo presente na imaginação, algo que fora trabalhado pela inteligência e que se tornou objeto necessário para uma tal ou qual finalidade do indivíduo. É curioso notar que, muitas vezes, acontece o encontro entre a vontade e o desejo: eu tenho de trabalhar, mas só posso ir se eu quiser, então, levado por uma reflexão consciente, julgando ser necessário labutar pela minha subsistência, eu me ponho a caminho do trabalho. Mas, hoje, eu fiz o exato oposto. Depois de estudar um pouquinho de Latim pela manhã e esperar pelo almoço que não vinha, me entreguei ao nada. Vi as horas do dia, tal como as correntes do alto mar, me afastarem da terra firme e me conduzirem para o desconhecido, para o despropósito. Tudo o que precisei fazer foi boiar, me manter à tona. Notei que, no fim, a experiência fora mesmo nauseante e que, por mais que sereias viessem, o prazer nunca, nunca perdurava, tudo era tão vago e sem sentido.
Escrevo num esforço de exorcizar esses demônios que me visitam; escrevo, porque trazer as coisas à existência mediante à palavra -- dita ou escrita -- é imitar o Criador. Nós não temos o domínio do conhecimento sobre a nossa própria natureza, não nos conhecemos, não sabemos de nós. Vivemos como se tivéssemos o pleno domínio de tudo, mas esse "tudo" não existe aqui, ele está lá na Eternidade. Aqui, nós somos como que metamorfoses ambulantes, vivendo o dilema da tensão entre o ser e o não-ser cotidianamente. Agradeço às sereias que me visitaram hoje, mas sei que elas se foram para sempre. Não é só o prazer do náufrago que se constitui num caniço, ele próprio é um caniço; sua fragilidade o confunde e só o faz desejar ser levado cada vez mais para longe pelo mar.
Adeus!