Sobre o tempo
Nossos desejos, tão humanos, dão poder mágico aos recortes que fazemos do tempo. Desejamos ter fechado uma porta e deixado para trás uma sala horrível, com móveis velhos e empoeirados, paredes gastas, piso sujo, odores insuportáveis... Desejamos, ao acordar hoje, ter entrado em uma sala nova, confortável, com bela decoração, lindos móveis...
É prazeroso desejar. E podemos, nessa brincadeira de desejos com o tempo, imaginar que não estamos iniciando 2021, mas voltando para 2019 para, assim, podermos abraçar (aquele abraço de urso de quem quer passar a eternidade no aconchego do outro) as pessoas que existem, agora, apenas em nossas lembranças. “Oh, tempo, dê dois passos para trás, ande devagar e, depois, pule um ou dois anos”.
Desejar é bom... Pena que esta mosca chata da realidade não para de zunir nos nossos ouvidos. A mosca incomoda, mas nos desperta do sono. E se olharmos bem para essa mosca, vamos compreender que ela não é apenas o que há (como se alguém dissesse: “tudo bem, é o que temos”), mas, sobretudo, o que somos – e não se trata de um “somos” completo, um ser acabado, pronto, mas em construção.
E o que temos para nos construir (não somente como indivíduos, mas como grupos, como coletividade, como seres humanos)? O tempo. Não esse tempo com “poderes mágicos”, que convidamos para brincar de ano velho e ano novo. Não. Trata-se do tempo – o presente, o durante, que tem, justamente, o tamanho de nossas vidas.
O tempo, esse nosso tudo, é o nosso tempo. Ele não é nosso inimigo. Não marcamos ponto contra ele a cada fio branco arrancado. O tempo é o café que bebemos, é o barulho lá fora, é este calor, é a nostalgia nas fotos, é o celular que toca, é a tristeza, a alegria, o instante em que dividimos com o mundo a nossa existência, as marcas de nossa história em nossa pele e tudo que guardamos em nós, os pensamentos, as memórias, os sentimentos. Tempo é tudo, é nossa vida – é o passado que mora em nós, é o agora e é o futuro, com contornos desconhecidos, mas projetados.
E o tempo em nada tem a ver com quantidade. “Aproveite bem o seu tempo”, ordena o mundo da produção, referindo-se à quantidade. Há modelos de planilhas para “se organizar o tempo” e, assim, “usá-lo bem”. As 24 horas, os sete dias, os 12 meses... são apenas ferramentas para roteirizar a rotina (fazer da rotina o que ela é: rotina). Não se trata de viver.
O problema é a submissão cega ao império dos números. É preciso olhar ali no canto, escondido nas sombras, o “como” e tirar os holofotes do “quanto”. A pergunta não deveria ser “quantos anos você tem?” e sim “como foram e como estão sendo os seus anos?”
Alguns minutos bem vividos valem mais que uma vida inteira desperdiçada. Então, que vivamos o nosso tempo, o nosso durante. Este é o nosso presente.